De que é que me arrependo na vida?

A casa-de-banho sempre foi um espaço de profícua imaginação. Foi sentado numa sanita que eu reescrevi, e consegui finalmente resolver, a peça “Cabo 20” que encerrava a récita do meu 11º ano. Foi no WC do restaurante Vivaldo’s, e não na sua fantástica esplanada com vista para o mar, que eu me lembrei do enredo de “de lábios secos”, o conto que mais gostei de escrever até hoje. Foi sentado, de braços cruzados sobre as pernas, a olhar para o mosaico no chão que eu, quando tinha sete anos, me pus a imaginar o que seria não existir e entrei em pânico.

A casa-de-banho em casa dos meus pais era o meu refúgio – a única divisão onde eu podia estar totalmente isolado. Talvez por isso, me tenha permitido nesse dia entrar em contato com a angústia de tentar conceber o que seria não existir. Lembro-me do meu pensamento ter entrado em espiral, sem saber como sair dele. Lembro-me que o meu pai me tentou acalmar com a sua voz sábia e as suas mãos grandes e quentes. Não funcionou. A única solução que serviu ao meu jovem ego foi enfiar a minha morte numa caixa, fechá-la, pregar-lhe a tampa e arrumá-la a um canto.

A tua avó está a dormir

Com o passar dos anos apercebi-me que não era só eu que estava agachado no canto oposto da caixa a gritar “la la la” – a derradeira estratégia para ignorar a morte. Era toda a sociedade. Segundo o meu pai, o sexo terá passado o capuz do tabu à morte ao longo do último século. Quando o meu pai era criança, ninguém falava de sexo abertamente, mas os mortos eram velados em casa. Agora há educadores a ensinar nas escolas como se coloca um preservativo, mas a morte passou a estar escondida do olhar das crianças.

A minha participação neste tabu tornou-se evidente quando a minha avó faleceu e os meus filhos foram ao velório. Eles entraram muito curiosos na sala onde estava o corpo. Quando se aproximaram com vontade de ver a bisavó de perto, eu senti medo, vergonha, culpa. Sentia-me dilacerado entre querer deixá-los ter essa experiência, o medo da sua reação e a vergonha de poder estar a ofender alguém. Felizmente, um dos meus tios, um poeta na arte de viver, tomou conta do assunto e mostrou-lhes a bisavó, sua mãe, com a beleza da simplicidade. Quando eles lhe perguntaram se ela só tinha cabeça, ele levantou o lençol que cobria o resto do corpo. Com a curiosidade saciada, afastaram-se tranquilos. Quando me reencontraram, disseram-me: “A tua avó está a dormir”. Eu, que era todo tensão, derreti-me com a verdade da inocência. Pude então aproximar-me e prestar a minha homenagem sem medo.

Este episódio durante o velório veio confirmar algo que comecei a compreender há pouco tempo. Ao enfiar a minha morte na caixa, enfiei também parte do meu pulsar. Morrie Schwartz, um professor de sociologia que morreu de esclerose lateral amiotrófica, explicou-o desta forma:

“Quando se aprende a morrer, aprende-se a viver.”

Bom aluno como sou, decidi dar a mão ao Rodrigo-com-sete-anos e juntos começámos a furar uns buracos na caixa para espreitarmos lá para dentro. Chegámos mesmo a abrir a caixa e deixámos a morte sair à rua durante um bocadinho, para a podermos ver melhor. Ainda vi muito pouco, mas o que vi tem ajudado a transformar a minha vida.

Um pássaro ao ombro

Um dia decidi começar uma reflexão diária inspirada na contemplação budista sobre a impermanência da própria vida. Pelo menos uma vez por dia imaginava que tinha um pequeno pássaro no ombro. Virava a cabeça para o olhar e perguntava-lhe: “É hoje o dia em que vou morrer?”

Esta pergunta remetia-me sempre para um espaço introspectivo, no qual fazia um checkup interno das minhas sensações. Descobri que é difícil mentir a mim próprio nesse espaço. A morte parece ter uma capacidade inigualável de me despir de todas as máscaras e forçar um olhar verdadeiro sobre as minhas prioridades, sobre a forma como quero viver a minha vida.

Já tinha noção deste poder da morte, mas não sabia usufruir dele. Quando era um jovem universitário por vezes fantasiava que um acontecimento trágico me daria a coragem para fazer o que-eu-realmente-queria. Se me perguntassem o que era isso que-eu-realmente-queria, eu não saberia responder. Era apenas uma sensação pouco concreta, de que não estava a percorrer o meu caminho. Esta possibilidade drástica nunca aconteceu e só fantasiar não mudou nada. Por oposição, a possibilidade de olhar para a morte em movimentos pequenos e lentos tem me trazido muitos frutos. Um deles, talvez o mais importante, foi uma nova perspetiva sobre a morte, uma sobre a qual eu consigo trabalhar.

Como um feto antes do nascimento

Há pouco tempo fizeram-me uma artroscopia ao joelho esquerdo. Antes de entrar para a sala da cirurgia informei o anestesista de que não queria ser submetido a uma anestesia geral. Sentia o medo de perder o controlo. O cirurgião insistiu que preferia que eu estivesse inconsciente e eu acabei por ceder. Achei que era melhor seguir a vontade de quem ia estar a trabalhar. Tentei estar o mais consciente possível e captar o momento do apagão. Recordo as toucas coloridas dos médicos, o cheiro intenso a queimado que me inundou as narinas, a perda dos sentidos e a sua recuperação já noutra sala ao lado de outras pessoas.

Antes de perder a consciência, imaginei que a morte sem sofrimento não seria muito diferente daquela experiência. Apercebi-me que a partir do momento em que aceitei a anestesia, o medo foi sendo substituído por uma curiosidade inquieta pelo desconhecido. Esta experiência, que me inspirou um conto, permitiu-me começar a aceitar uma nova perspetiva sobre a morte, uma que me serve. Ouvi esta perspetiva quando tive contato pela primeira vez com o trabalho de Françoise Dolto. Françoise, uma pediatra e psicanalista francesa, era especialmente dedicada às crianças. No final da sua vida, já de cadeira de rodas, partilhou que a morte em vez de a assustar a intrigava. Dizia que se sentia pronta para a nova aventura, “como um feto antes do nascimento”.

Esta nova perspetiva, baseada numa curiosidade contemplativa, é racional e não especulativa. Assim quando o meu ego angustiado inicia um pensamento em espiral sobre a não existência, eu posso contrapor com o argumento da curiosidade perante o desconhecido. E como eu tenho memória de experiências felizes quando fui ao encontro do desconhecido, consigo sentir uma nova paz perante a dúvida.

Samasati

Esta curiosidade contemplativa levou-me um dia a aceitar o convite para participar numa meditação Samasati. Esta meditação foi criada por um seguidor de Osho, o místico indiano dedicado ao desenvolvimento da consciência através da meditação. A primeira parte da meditação foi como que um ensaio do fim da vida – uma oportunidade para praticar uma morte consciente. Através de uma música e das palavras de um facilitador, imaginei o que seria perder todos os meus bens, chorei ao despedir-me de todas as pessoas que são importantes para mim e então aceitei entregar-me ao desconhecido. Na segunda parte da meditação festejei o facto de, na verdade, não estar morto. Nunca as palavras “é tão bom estar vivo” me saíram da boca com tanta emoção.

Juntamente com a morte, saiu da caixa uma enorme vontade de viver. No dia seguinte à meditação inscrevi-me numa das experiências mais valiosas que tive até hoje. Uma inscrição que andava a adiar por medo da vida (falo sobre ela no artigo “O ouro que se esconde nas gavetas empoeiradas”).

O que-eu-realmente-queria

Ric Elias tinha um lugar na primeira fila no voo 1549, o avião que pousou no rio Hudson, em Nova Iorque, em Janeiro de 2009. Numa TED Talk emocionante, ele conta o impacto, que a dádiva de não morrer naquele dia, teve na sua vida. Eu revi recentemente o relato, enquanto fazia scrolling no Facebook. Não cheguei a maximizar a imagem e não liguei o som. Meio distraído seguia as suas palavras através das legendas em português. Então ele começou a contar que à medida que o avião se estava a aproximar da água, ele sentiu uma enorme tristeza associada a um único pensamento. Ele queria ver os filhos crescer. De repente, fui surpreendido por várias lágrimas que começaram a rolar pela minha face.

Mais tarde, ao refletir sobre o que tinha acontecido percebi que ao contrário do Rodrigo-universitário, agora sei o que-eu-realmente-queria e que parte disso é ser um grande pai. Agora as sensações já não são pouco concretas. As emoções têm mais espaço e surgem em momentos tão simples como quando estou a ler histórias para o Leonardo e a Sofia adormecerem. Agora o meu caminho é muito mais claro. Muito desta clareza veio da possibilidade de espreitar para dentro da caixa. Talvez esse seja um caminho para que no fim, se a Bronnie Ware me perguntar de que é que me arrependo na vida, eu possa responder: nada!

 

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11 opiniões sobre “De que é que me arrependo na vida?

  1. O medo da morte penso que é universal! Também eu o sinto, embora hoje menos, do que ontem. Penso que esta caminhada que fazemos, a que se chama Vida, nos ajuda( especialmente aqueles que tal como eu, têm o previlégio de já estarem por cá há uns bons anos), a irmos convivendo várias vezes com ela e que desse convívio, aprende-se a aceitá-la com alguma serenidade, como sendo mais uma etapa da vida.
    No entanto, obrigada pela dica, pois a tua sugestão de a encarar-mos como algo para descobrir, é muito mais agradável. De facto, em vez de a enfrentar-mos como um fim, poderemos passar a olhá-la como um recomeço, um início de uma nova aventura.

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  2. Penso que o medo da morte tem a ver com o medo de não termos controle sobre algo…Mas de fato há várias coisas sobre as quais não temos controle!! Eu arrependo-me de várias coisas na minha vida mas lido bem com isso pois tudo é uma lição de vida.

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  3. Surpreendente terem levado os miudos ao funeral…. é verdade que escondemos demasiado a morte….. nao ha duvida que a simplicidade, embora dificil, melhore muito a vida. e onde podemos ler os teus contos ?

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  4. Vivi durante quase toda a vida como se fosse imortal. Só há pouco tempo, por um susto não confirmado, percebi que, afinal, era mortal. Quando aos 28 anos fui operado ao apêndice, também pedi que me dessem só a anestesia local. E assim foi, pois não queria sequer perder a consciência. Nesta altura da minha vida já creio esperar com alguma naturalidade esse momento decisivo. E se o não for, será uma agradável surpresa. Agora já tenho algumas certezas: que as dúvidas com que cresci, vão ser as dúvidas com que morrerei. A morte nunca me aterrorizou, nem quando corri riscos maiores. Era a tal minha imortalidade. Com a idade a gente acostuma-se e penso até que se alguma impaciência tiver poderá ser a de que ela tarde em chegar. Há formas de vida que eu não gostaria de ter que suportar.
    Mas talvez cultive esse lado da curiosidade, de saber se há algo do lado de lá. Assim, desconstruindo esse momento, ajudo-me a mim e aos que estiverem por perto.
    Abraço,
    JG

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  5. Meu caro Rodrigo o final do texto parece-me acertado, “(…) de que é que me arrependo da vida (…) nada!”. A casa-de-banho; A tua avó está a dormir; Um imaginário pássaro no ombro; Como um feto antes do nascimento; Samasati (curiosidade contemplativa) e O que-eu-realmente-queria; são passagens do maior interesse, cada uma a exigir estudo profundo, por conduzirem à conclusão “[(…) ao contrário do Rodrigo-universitário, agora (primavera de 2016) sei o que-eu-realmente-queria e que parte disso é ser um agrande pai.] Naturalmente, aos meus 80 anos, tenho como certo que o Rodrigo Dias, para além de atual grande pai, vai ser, mesmo, um grande avô e um ainda maior bisavô. Tudo bem, mas aqui fica que o importante é irmos trabalhando, irmos acariciando, mas, sobretudo, estarmos disponíveis para apreciar, ajudar, valorizar e responder aos outros.

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