Elogio ao choro

A notícia chegou como um comboio de alta velocidade. Embateu-me de frente, levou-me o fôlego, o ânimo e a lógica. Bastou um telefonema e o meu mundo virou-se de pernas para o ar. O meu amigo tinha morrido e nunca mais íamos poder conversar.

A morte é uma merda

Tenho lido muito sobre a morte, mas nem a aceitação tranquila professada pelo livro tibetano da vida e da morte, nem o ultra-significado do logoterapia de Victor Frankl me conseguiram ajudar. Não me recomendem mais livros. Só me sinto impotente. A morte é uma merda e eu preciso de chorar.

Quando soube que o meu amigo tinha morrido, adotei a tática mais eficiente que conheço: cuidar dos outros. Então arranjei um plano. Tinha de garantir que todos estavam a fazer o seu luto, o qual culminaria com o funeral. Abracei quem precisou. Conversei. Procurei ajuda para quem mais necessitava. Fui o ombro. O olhar. O toque. E até a piada desanuviadora. Mas por dentro suspendi o meu ânimo. Era como se alguém tivesse colocado o filme da minha vida em pausa. Nunca dormi tantas sestas.

Então chegou o funeral. Éramos olhos sem saber onde olhar, pés sem saber onde chegar, bocas sem saber o que dizer. Através do ar pesado e espesso lá fui tentando liderar o nosso grupo. Arrastámo-nos atrás do caixão. Tentámos cantar. Vimos o caixão baixar à terra.

Eu observava tudo desde um lugar distante. Estava ali mesmo ao lado do caixão, mas longe, muito longe. Como se tudo não passasse de um relato trágico que se finge ouvir contar a quem não consegue parar de partilhar desgraças. Ao regressar do cemitério encontrei os meus amigos sentados num relvado. Só me apetecia fugir. Perguntei-lhes:

O que é que estamos a fazer aqui?

Ninguém soube responder. Perdido sentei-me no meio deles. Então do fundo de mim, como uma rolha sob pressão, saltou a pergunta derradeira:

E agora … o que fazemos?

Com a rolha veio uma enxurrada de lágrimas. Fui tomado de solavancos e de ruidosas inspirações. Imediatamente várias mãos tentaram socorrer-me. Shhhh, pronto. Vá força. Apertavam-me os ombros como se eu precisasse de ser salvo.

Só me apeteceu gritar: Larguem-me!

Em vez disso fiz o que aprendi durante toda a minha vida: controlei-me, voltei a colocar a rolha e contive a inundação. Ergui-me e fui cuidar dos outros. Eficiente, mas muito pouco eficaz. As lágrimas aqui ficaram, presas e a afogar-me o coração.

Tudo bem?

Sempre tive dificuldade em responder à pergunta não-pergunta mais corriqueira do dia-a-dia português:

Tudo bem?

O que é que se responde? A verdade!? Mas, para quem é que neste mundo está tudo bem? Uma das muitas vezes em que respondi com a verdade tive a seguinte conversa:

– Tudo bem?

– Não. Estou triste.

– Rodrigo, não tens razão nenhuma para estar triste! Tu és casado, tens filhos, um trabalho, és jovem. Tens tudo para ser feliz.

– Se não estás disponível para a minha resposta, não me perguntes.

Se calhar fui um bocado bruto na minha resposta final, mas eu estava triste.

Temos tanta dificuldade em ver o outro sofrer que não o permitimos. Escrevi sobre a minha observação deste fenómeno no artigo “Deixem-nos chorar“. Ainda continuo a ter dificuldades em percorrer a curva completa da emoção.

Tu já choraste?

Uma semana depois do funeral comecei a sentir alguma ansiedade, um aperto e calor no peito. Era o meu coração a querer respirar. As lágrimas precisavam mesmo de sair. Alguém que me conhece muito bem já me tinha perguntado: Tu já choraste?

Como é que alguém, condicionado toda a vida para não chorar, passa para lá dessa barreira e provoca o choro? Cada um terá a sua resposta. Eu perguntei a alguém que sabe mais do que eu sobre isto das emoções e a resposta veio em jeito de música.

Adagio for Strings, Samuel Barber

Deitado. Corpo despido, estendido, prostrado. As primeiras notas dos violinos infiltram-se pelos poros da minha pele. Arrepiam cada célula pelo caminho. Buscam a minha alma. O peito afunda-se. Dói respirar. O timbre do violoncelo desliza por mim, sedoso. Dá-me colo e eu permito a dor. Os violinos sobem uma escada que desce, em direção a toda a tristeza esquecida. Sábios, param e sentam-se num degrau. Avisam-me para me preparar. Eu respiro em breves fôlegos. Receio o que se segue. Os olhos já marejam. O corpo vai se ajustando na lentidão. Então os violinos voltam a liderar e levam-me por um lance em caracol. Parece uma carga, cada vez mais aguda, cada vez mais profunda, cada vez mais dolorosa, até chegar ao abismo. O meu coração está de bicos de pés, periclitante. As cordas calam-se e eu caio…

No encontro com o abismo, onde é escuro e se escondem os maiores monstros, eu encontro o grito escondido, abafado:

Porquê?

Sinto-me vivo

A morte é uma merda. Chorar é bom. Não são duas frases eloquentes, mas são as que melhor expressam o que eu sinto. Hoje chorei pelo meu amigo. Chorei por todas as mortes estúpidas. Chorei por saber que um dia vou morrer. Depois levantei-me e fui correr. Já não corria há cinco anos. Hoje sinto-me vivo.

Chega de dizer que os homens não choram. É como querer que os homens não tenham prazer. Um vem com o outro. Aceitemo-lo.

*escrito a 8 de setembro de 2017

23 opiniões sobre “Elogio ao choro

  1. A Morte, não existe! – Porque, se existisse, seria o único Engano de Deus!
    O que existe, é a nossa total Incapacidade de entendermos o tempo eterno do Tempo e o vazio sem fim do Espaço infinito.
    Abraço.
    Olímpio

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  2. Li como se fossem minhas estas palavras… o amigos que vão e que perdemos ficam para sempre, fazem parte de nós, e do nosso dia-a-dia. O tempo passa e a dor atenua-se mas fica para sempre lá. Toda a vida que ficou por viver, com os deles e connosco.
    E a falta que nos fazem? Mas nem tudo gira à nossa volta e até este é um sentimento que por vezes nos parece egoísta.
    É uma marca de morte na vida e para a vida…

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  3. Adorei o texto e fiz o mesmo com a morte recente do meu tio, no final de abril deste ano. Estive para a minha mãe, única irmã e mais velha que ele, foi como uma mãe para ele; estive para os meus primos. Passada uma semana caí em mim e chorei.. e choro sempre que tenho saudades…custa muito. Força! Beijinhos

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  4. Os homens também choram, sem duvida. Sinto um tremendo respeito por partilhares a tua vulnerabilidade Rodrigo. Só quem é corajoso e tão cheio de vida se pode render à tristeza e ao desamparo face à inevitabilidade da morte.
    Ao ler o teu texto senti-me mais próximo de toda a humanidade. Estamos todos no mesmo barco

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  5. Foste mais um pássaro
    que partiu
    deixando a tua Alma
    junto a nós

    Carregaste um fardo
    tão pesado
    que tuas asas se quebraram
    sem querer

    Agora poderás voar
    no Infinito
    já sem barreiras
    e sem nuvens que atrapalhem

    Serás Luz e brilharás,
    no coração
    de todos, os que a teu lado
    rodopiaram tantas vezes

    Cintilarás nas estrelas
    que olharemos
    pela noite
    e dormirás apaziguado
    no teu Sono

    18/08/2017
    F. Abrantes
    Foi este o poema que escrevi e ofereci ao Filipe , no dia em que o teu amigo partiu, deixo-o aqui para ti. Foi assim que deixei cair as lágrimas, por alguém que não conhecia, mas cuja morte me doeu muito, também sou Mãe e como tal absorvi esta perda, pela proximidade com a idade dos meus filhos. Ninguém deveria morrer sem ter tempo de conhecer a Vida . Um beijo grande

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  6. Noa anos 60 Luiz de Sttau Monteiro escreveu o livro “Um Homem Não Chora”. Pouca gente leu o livro, mas o título ficou colado a todos os homens que queriam ter a imagem que se cultivava à época. Só que o autor queria exatamente o efeito contrário, numa crítica forte à ideologia então dominante. Eu li o livro e me lembro de que quando a personagem, homem, é apanhada por uma mulher a chorar, respondeu que era de riso! Sempre chorei, tal como o Sttau Monteiro, e tenho para mim que chorar e rir são os dois contrários cuja síntese é a Vida.
    Sobre a morte, acredito nela até porque já vi morrer muitos amigos. O primeiro foi o pai. Nesse dia perdi uma boa parte de mim. Senti pela primeira vez o que era a falta de alguém que se ama. E nunca mais fui o mesmo! E vou chorando e mudando de cada vez que me morre alguém, morrendo eu um pouco também. Talvez assim custe menos quando chegar a minha vez. Nesse ia, se calhar, também, chorarei. Por mim! E pelos meus amigos.
    Abraço Rodrigo, coração de leão.
    JG

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  7. Li o texto a correr. Senti a correr. Porque a morte é uma merda.. E tenho medo de me demorar nestas palavras..
    Ainda bem que te pudeste encontrar. E te permitiste deixar sair o que havia.
    E depois nos brindas com este texto que é duro e forte.. li umas 5 ou 6 vezes o último parágrafo.. é tão verdade.
    Abraço forte

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  8. “Só me apeteceu gritar: Larguem-me!
    “Em vez disso fiz o que aprendi durante toda a minha vida: controlei-me, voltei a colocar a rolha e contive a inundação. Ergui-me e fui cuidar dos outros. Eficiente, mas muito pouco eficaz. As lágrimas aqui ficaram, presas e a afogar-me o coração.” Nada disto meu caro Rodrigo, já estudei o comentário do coronel, engenheiro, Jorge Golias e a minha experiência vai no mesmo sentido, chorar é bom e as nossas lágrimas ajudem a viver em termos saudáveis, ou seja, faz bem à Qualidade de Vida. Hoje aconteceu que chorei na varanda antes de chegar a colaborador doméstica (09h00) quando a minha mulher estava deitada e acabado de acordar. Chamou-me dizendo, “parece estar alguém a chorar, disse-lhe que era um bebé na televisão que tinha acabado de ligar.
    Enquanto almoçávamos no restaurante Quitanda, aqui no prédio, pertencente ao mesmo dono do restaurante do Centro Náutico onde almoçámos, um vizinho disse-me que o Sr Manuel (dono dos dois restaurantes e que mora aqui ao meu lado) estava a chorar no carro devido ao estado de saúde de uma das duas filhas. De imediato fui falar com o ele compreendendo a sua dor com ter a filha no hospital em estado grave e o que lhe disse tem a ver com ser bom chorar, assim fez continuando a chorar o que antes me parecia difícil de acontecer naquele homem.
    Um abraço da maior consideração e muita amizade.

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  9. Obrigado RODRIGO para mim esse maravilhoso texto foi simplesmente dedicado ao vosso colega e grande amigo BRUNO o meu querido filhinho nós continuamos a chorar todos os dias pelo nosso menino estamos com muitas saudades cada dia que passa mais dificil vai sendo .
    Bjinhos e muito obrigado o meu menino vai estar sempre a ajudar vos assim como a nós 💔😢😢😢

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  10. Nem existem palavras.. texto extremamente forte.. tal e qual como me sinto.. até hoje parece tudo tal surreal.. o porquê parece estar sempre presente quando tentamos procurar uma resposta ao que aconteceu..
    O aperto no coração.. a ansiedade até hoje encontram se presentes.. as lagrimas então nem se fala..
    Só os dias agitados e ocupados me fazem desviar um pouco o pensamento..
    Só o passar dos dias me faz aprender a lidar com a dor…
    Pensar que não o voltarei a ver.. sim porque nunca mais o voltarei para o resto da minha vida deixa me destroçada e mais uma vez as lágrimas voltam a cair pelo rosto.. E nesses momentos tento me lembrar dos nossos momentos de infância.. das nossas brincadeiras.. dos nossos momentos.. E tento guardar as boas recordações…
    Jamais será esquecido..
    Só nos sobra aceitar e aprender a lidar com a sua ausência que tanto dói pensar que será eterna..

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  11. Tambem chorei com a morte deste teu amigo, que tambem era meu amigo…
    Um menino que eu vi crescer…
    Que foi talvez um dos meus primeiro doentes….
    Chorei, chorei muito quando soube da sua repentina partida deste mundo.
    continuo a chorar, quando olho para a minha filha e penso no que os pais dele estao a sofrer… uma dor sem fim, sem atenuantes.
    Ate um dia miudo giro…

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  12. Vi o teu texto logo no primeiro dia e tenho voltado a ele algumas vezes mas ainda não consegui encontrar as palavras “certas”. Mas deixo-te aqui um abraço, Rodrigo*

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  13. Obrigado Rodrigo pela partilha, mais uma vez, tão generosa, verdadeira e íntima. Chorei ao ler-te e ouvir o nosso Samuel Barber.
    Que bom que é este elogio à humanidade tal e qual como ela é. Faz-me sentir mais eu e mais próximo de ti e dos outros.

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