Quando as emoções ameaçam transbordar

quase a rebentar

Estou sentado numa cadeira recuperada pela minha tia. É laranja, almofadada e com reforço lombar. Não é perfeita, mas é a minha preferida. Os meus dedos percorrem um teclado preto. Têm a sua própria memória. Encontram teclas, que mesmo que eu pense, não sei onde estão. Os meus olhos estão fixos num monitor. Hipnotizados. Como se não existisse barreira entre a imagem e o pensamento. Não faço ideia do que se passa lá fora. Sei que é de dia. Não sei qual é o estado dos meus ombros, se tenho vontade de urinar, ou se tenho fome. O tempo parou. O som desvaneceu-se. As letras nascem de um traço preto no ecrã, que teima em piscar quando eu, por momentos, paro para pensar. Letra a letra construo palavras que são uma pálida versão dos meus pensamentos e sentimentos – símbolos externos a representar significados internos.

O impacto de uma mensagem

Poder expressar-me através de um teclado, protegido pelas paredes da minha sala sem que ninguém me possa incomodar, sabe bem. Posso deambular pela minha mente como o Charlie na fábrica dos chocolates – ingénuo e enamorado. É desde este mundo abstrato de interpretações que tentarei descrever-te o significado que eu atribuí à seguinte mensagem que recebi de um amigo. Isto depois de lhe ter perguntado pelo nome de uma pessoa:

…sinceramente…

Esta mensagem é composta por reticências, uma palavra e de novo reticências. Parece inofensiva. Mas para mim foi toda uma experiência. Ao ler a mensagem a minha voz interna carrega na sílaba ‘ce’ com um tom grave e o sufixo ‘mente’ é dito como uma barreira que se fecha num só movimento. Sinto que me está a ser cobrado algo que eu fiz errado. Sem perceber como, estou de volta à infância, quando a vergonha me exigia que eu fosse o bom aluno bonzinho.

…sinceramente…

A nossa mente tem esta capacidade incrível de analisar as experiências e de lhes atribuir significados. Por isso é tão importante começar por experienciar e sentir. Sem o sentir, a análise não tem qualquer valor. E eu gostava de partilhar contigo o meu sentir naquele momento. Só que isso é tão difícil quando estou aqui a escrever, enamorado dos meus pensamentos, que tenho de sair e ficar só nas sensações. Volto já…

Um cavalo à solta

Imagina que és um cavaleiro a passear por uma bela floresta de carvalhos. Estás tão embevecido com a natureza que aos poucos te vais abstraindo de que estás em cima de um cavalo. Sem teres que pensar, o teu corpo acompanha harmoniosamente o andamento a quatro tempos do animal. O som dos cascos desvanece-se e dá lugar ao canto dos pássaros, que se escondem nos ramos das árvores. Alegremente assobias de volta. Está tudo sob controlo e tu estás feliz.

Então, subitamente, ouves um rugido. O teu cavalo para assustado. Antes de conseguires reagir, um urso gigantesco aparece do nada e volta a rugir. O teu cavalo reage e dispara a galope na direção contrária. Agarras-te à sela temendo pela tua vida. Tentas puxar pelas rédeas. Mas a situação está fora do teu controlo e até que o cavalo se acalme, não há mais nada que possas fazer.

Ler aquela mensagem foi como ouvir o urso feroz. O meu sistema nervoso disparou e eu tornei-me agressivo. Queria magoar alguém. Era como se estivesse a ver um filme a acontecer, sobre o qual não tinha qualquer poder. O meu cavalo estava à solta. Sentia um aperto na garganta. Uma tensão no maxilar. E os meus dedos encarregaram-se de transformar a minha fúria numa série de disparates via WhatsApp.

Uma torrente de emoções

O meu amigo, mais controlado do que eu, respondeu-me simplesmente “Ok”. E isso desarmou-me por completo. A fúria deu lugar à culpa. De repente senti um aperto no peito. Tinha de lhe pedir desculpa. Tentei telefonar-lhe mas ele não atendeu. Fiquei em pânico. O cavalo continuava descontrolado. Sentia-me incapaz de respirar, de me conter, de estar em contacto com o que estava a sentir. Só queria deitar as sensações fora. Era demasiado. Tentei ligar mais uma vez. Ele continuava sem me atender. Fiz um esforço por me acalmar. Recriminava-me por não ter sido capaz de me conter nas mensagens que lhe enviara. A minha mente enchia-se de pensamentos intrusivos …ele ficou zangado de morte…as pessoas vão me achar detestável…vão deixar de me falar… O cavalo estava mesmo descontrolado!

Sem conseguir falar com ele, decidi enviar-lhe um longo sms, onde lhe pedia desculpa.

Desculpa. Fui completamente parvo. A palavra …sinceramente… despertou em mim um sentimento de vergonha que não tem nada que ver contigo.

Não obtive resposta. Ele tinha simplesmente cortado a comunicação comigo.

A torrente de sensações ameaçava transbordar as margens do meu rio. Felizmente tenho uma família que me dá um contorno cheio de calor e amor. São os abraços apertados, as perguntas inocentes e os olhares de ternura. Quando me deitei encostado à Carla, ainda sem resposta, respirei fundo e naquele contacto senti está tudo bem!

Está tudo bem!

Perante a ansiedade que eu senti naquele dia, a minha razão não foi capaz de me ajudar. Por mais que eu tentasse analisar e dizer coisas a mim próprio, a aflição mantinha-se. O que mais me ajudou foi o contacto com as sensações. Sentir (o que é muito diferente de pensar) que havia quem continuasse a comunicar comigo ao nível mais básico que há – o toque – trouxe-me a calma suficiente para que eu continuasse a funcionar.

No dia seguinte o meu amigo deu sinais de vida no WhatsApp e eu voltei a tentar ligar-lhe sem sucesso. Mais calma, a minha mente produziu uma hipótese extraordinária. Fui verificar e percebi que tinha estado o tempo todo a telefonar para o número errado. Atendeu-me tranquilamente. Não tinha visto o sms, nem as chamadas. Quando lhe pedi desculpa, respondeu-me que estava tudo bem. Ele tinha percebido que aquilo não era com ele e não tinha ficado chateado.

Nem sempre os ursos nos querem fazer mal.

18 opiniões sobre “Quando as emoções ameaçam transbordar

  1. Aaaaarrrggghh como também me revejo neste testemunho.. Obrigada pela partilha. E é tão bom sermos lembrados do essencial.. do toque que está ali.. das sensações.. da vida que pulsa.. Obrigada!

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  2. muito bom.
    Com demasiada frequência a transmissão de informação via WhatsApp e SMS e email origina falhas de comunicação, libertando os mais diversos ursos. Algo que espero não provocar com este pequeno comentário …

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  3. A comunicação virtual tem destas confusões. E muitas vezes nem leio o texto que segue. Quando me respondem e chamam a atenção para o que disse fico alarmado, porque sou algo perfeccionista, mas já é tarde, sobretudo se o texto desconforme até acaba por fazer algum sentido, mas no contrário ao que pretendíamos. Já me aconteceu. Mas os amigos são também para isso e eu só falo virtualmente com amigos. E, depois, a ternura de um sorriso ou abraço, quando existe, e como descreves, resolvem (quase) tudo.
    Abraço amigo,
    Jorge G.

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    1. Olá Jorge.
      Às vezes reescrevo as minhas mensagens várias vezes na esperança de conseguir dizer o que realmente quero dizer ir. Às vezes acabo por apagá-las e simplesmente desisto.

      As palavras na comunicação parecem-me sempre redutoras e os emojis não são uma solução perfeita.

      Obrigado pelas tuas palavras.

      Abraço

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  4. Meu caro Rodrigo, a tua crença de que “o mundo necessita de autenticidade” e a tua certeza de que isso “é muito recompensador”, como mencionas no e-mail que recebi a anunciar este texto, quanto a mim as duas crenças estão certas e são da maior oportunidade.
    Depois, no texto, escreves; “Ao ler a mensagem a minha voz interna carrega na sílaba ‘ce’ com um tom grave e o sufixo ‘mente’ é dito como uma barreira que se fecha num só movimento. Sinto que me está a ser cobrado algo que eu fiz errado. Sem perceber como, estou de volta à infância, quando a vergonha me exigia que eu fosse o bom aluno bonzinho.” Aqui pode ter acontecido, por descuido ou por lapso de endereço, ter havido envio errado de que resultou aquele imprevisto “…sinceramente…”. No entanto pode ter havido repulsa ou indiferença sobre a recepção do e-mail ou de qualquer outra comunicação até podendo ser um livro ou uma carta, “encomendas” destinadas àquele destinatário. Este último comportamento, que o mundo atual da Psicologia Social considera proveniente de “relações tóxicas” a evitar, deve ser ultrapassado por forma semelhante à descrita no texto, ou, procedendo em termos de nos dar satisfação tratar bem quem nos trata mal com base na doutrina da religião católica.
    Obrigado pela demonstração de invulgar coragem ao assumires, e disso dares conta, autenticidade em grande parte da tua vivência, atitude que tenho como certo que, realmente, é “COMPENSADORA.
    Um abraço da maior consideração.

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    1. Caro António. Obrigado por trazeres o tema tão relevante da toxicidade nas relações. Quantas vezes não dei por mim a não ser capaz de me afastar de relações tóxicas por querer ser o “bom aluno bonzinho”. Também é verdade que a toxicidade por vezes está na nossa projeção para essa relação. Destrinçar o que é autêntico é uma tarefa para qual muito contribuem as pessoas que nos rodeiam e que nos aceitam tal como somos, sem julgamentos.

      Espero que estejas bem.

      Abraço

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  5. Já passei por essa história do urso!!! Ainda bem que ainda existem esses ursos bons.
    Gostei do artigo; A autenticidade devia ser o valor n. 1 sempre do ser humano; Até os cães são autênticos.
    Cumprimentos.

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  6. Às vezes somos nós que fazemos os nossos ursos…
    (que estas reticências não te levem a nenhuma corrida descontrolada)
    Querido primo, continuas a escrever sem mãos… só com cabeça, ou mesmo sem ela… só com o sentir. Adoro as tuas histórias. São o espelho daquilo que és: Autêntico!!
    Beijinhos enormes para ti e para a tua super família

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  7. Grande partilha! Muito educativa e útil 🙂 Adoro ler-te e sentir-me tão próximo de ti por te permitires ser tão transparente e genuíno. A aceitação do que escondemos perpassa a tua escrita num hino à intimidade e aceitação humanas. Que bom! 🙂

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