Queixar-me ou não me queixar

amordaçado pela queixa

Metade da turma está, mas não está. Portáteis abertos, conversas para o lado e olhares vazios. É como se eu não estivesse realmente presente, como se fosse um holograma emissor de informação com o qual não se têm de relacionar. Estarão ali apenas para não ter falta? Ganho coragem e explico-lhes um dos meus princípios de vida:

Se me estou a sentir aborrecido é porque estou a desperdiçar tempo de vida, então faço alguma coisa para mudar isso.

Desafio-os a responsabilizarem-se pelas próximas duas horas da sua vida.

Não desperdicem tempo. Se não quiserem estar aqui, vão-se embora. Isso é ok. Se ficarem, não esperem que eu seja o único responsável pela aula. Façam-me perguntas, observações, sugestões. Ajudem-me a tornar a aula interessante para vocês.

A metade interessada sorri, nervosamente cúmplices. A outra metade quase não reage. Há um ou outro sorriso constrangido e até uns olhares que se afastam dos ecrãs dos portáteis, surpreendidos pela loucura do convidado. Mas é só isso. Ninguém se vai embora e os olhares rapidamente regressam aos ecrãs. Alguma coisa muito mais interessante do que eu se passa no mundo digital. Merda! Espera-me uma batalha de duas horas pela atenção de cinquenta alunos do terceiro ano de licenciatura.

Queixar-me ou não me queixar?

Ao reler o que escrevi consigo identificar um lado meu que se queixa por não me darem atenção. Eu já fui um aluno universitário sentado numa sala de aula a olhar desinteressado para um professor, enquanto a minha cabeça deambulava por outros lados. Eu sei que o que aconteceu durante a aula que fui convidado a dar não foi pessoal. E, ainda assim, fica esta sensação dual entre: eu podia ter feito melhor versus eles podiam ter feito melhor.

Eles podiam ter feito melhor é claramente uma queixa e a queixa é um conceito muito interessante que me apetece explorar.

Costumo pensar que a queixa é uma fachada que esconde algo muito mais real. Por detrás dela há uma dor que precisa de ser cuidada. Neste caso, eu diria que foi a dor de não me sentir visto. Senti-me ignorado, eu que tinha investido tantas horas a preparar aquela aula. Como a criança que passa todo o recreio a fazer um desenho e ao chegar a casa o mostra orgulhosamente ao pai que, num gesto desdenhoso, lhe diz: Agora não. Como quero evitar esta dor de não ser visto, eu queixo-me e acuso o mundo de não se esforçar o suficiente.

Os alunos de hoje em dia não têm maturidade nenhuma. As universidades já não são o que eram. A culpa é da sociedade, que trata os jovens como crianças mimadas…

Da queixa até ao drama é um pequeno salto. E o drama sabe tão melhor do que a dor! Essa fica lá bem no fundo do coração, escondida debaixo de todas as máscaras e couraças.

Será então que queixar-me é errado?

Num extremo oposto, perante o gesto desdenhoso do pai, a criança pode não dizer nada, retirar-se para o seu quarto e jurar nunca mais fazer um desenho na vida. Em vez de se expressar, ela remove-se do mundo e não se queixa. A exigência das necessidades é substituída pela interiorização da culpa. Eu não sou bom o suficiente para que os outros me vejam. Em vez de exigir dos outros, eu exijo de mim. E sempre que sinto a dor, esforço-me mais e, ao esforçar-me mais, a dor fica maior. É um outro drama, mas este vivido em silêncio, mais solitário. E assim volta a sensação dual entre: a culpa é minha versus a culpa é deles. Como resolver esta dualidade?

A mim ajuda-me substituir a ideia de culpa pela ideia de responsabilidade. Se a primeira divide, a segunda aproxima. Então fica mais fácil pensar: a responsabilidade é minha e a responsabilidade é deles.

Cuidar de mim

Aquele público universitário era difícil e eu ainda sei pouco sobre ensinar o que é a Psicoterapia Somática em Biossíntese. No entanto, ao parar para refletir sobre o que se passou, percebo que a minha ferida (a sensação de não existir se os outros não me considerarem especial) interferiu na minha perceção do valor da aula. A dada altura fiquei tão atrapalhado por sentir que havia quem não estivesse interessado no que eu tinha para dizer, que deixei de estar totalmente presente no aqui e no agora. Fiquei perdido nas minhas dúvidas. Tive uma branca.

Eu não tenho real noção do meu contributo para a vida daquelas pessoas. Pedir feedback e melhorar a minha performance é parte do caminho. Mais importante ainda é continuar o longo caminho de cuidar das minhas feridas, para que a dor não interfira na minha capacidade de estar presente comigo próprio.

Este texto faria sentido terminar no último parágrafo, mas ficaria uma coisa importante por reconhecer: é mesmo bom quando tenho bons amigos comigo e me posso queixar sem me julgar por isso. E isso, para mim, não é fácil.

14 opiniões sobre “Queixar-me ou não me queixar

  1. Bom dia! Não considero queixa, o comentar com amigos.. ou num blogue!! O que fizeste.. de facto, é uma reflexão!! E como é bom.. refletirmos sobre esta temática…
    O problema é que não estamos habituados a refletir… E reagimos logo.. como se fossem queixas!!

    Adorei o teu texto!! E repito!! Como é bom refletir!!

    Beijinhos, Filipa

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    1. Obrigado Filipa. Há realmente uma distimção entre a queixa e a reflexão. E também considero que este meu artigo se tornou numa reflexão, por assumir a minha responsabilidade na situação.
      Abraço

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  2. Ui!!! belo tema! O meu dia-a-dia!
    Turmas com alunos (supostamente) adultos, que têm ao seu dispor telemóveis, portáteis, tablets, ligados ao (maravilhoso) mundo lá fora…..e aulas de 3h para dar!
    Como motivá-los, como cativá-los? Assim, como o Rodrigo fez! Pessoal, 3h da vossa vida é muito tempo para estarem aqui sem vontade, sem fazerem, a passar do quadro! Há coisas maravilhosas para se fazerem em 3h. Se escolhem vir então aproveitem para fazer, para tirar dúvidas, eu ando sempre no meio deles a ver quem não faz, sento-me ao lado, explico, porque se fizerem ali, na sala, aproveitam o tempo, aprendem, percebem, e é mais de meio caminho andado.
    Mas não é fácil. Não é mesmo. Não proíbo, nem posso (acho eu) o uso de telemóveis mas proíbo a partilha com os colegas (sim, porque já tive que pedir para saírem porque tinha um grupo de 4 a rir por causa de algo que um mostrou).
    Dar aulas assim não é fácil, mas não é impossível. Há sempre alunos super interessados e, mesmo que olhem para o telemóvel, estão lá. Estão interessados. Depois há os que, por mais que se tente, não querem. Mas então, tentem outras coisas. Se calhar não é aquilo que gostam.
    Na grande maior parte das vezes saio bem comigo. Quando consigo que um aluno do canto da aula, pegue no lápis e até perceba que sabe fazer, que até percebe aquela matéria. Que basta tentar.
    É a melhor das profissões, eu acho! E tenho a sorte de ser a que escolhi.
    E não se martirize com o facto de não terem dado atenção. Nós também aprendemos com eles, muito! E aprendemos a chegar a eles. Claro que as aulas teóricas são mais propensas a esse alheamento. É natural, mas desmotiva o orador. Talvez tenhamos que nos adaptar melhor ao mundo deles. Talvez tenhamos que ver mais TED talks, tornar o nosso discurso mais apetecível, adicionar multimédia….porque continuamos a ter uma escola do sec.XIX, com professores do sec.XX a ensinar a geração do secXXI….e entre cada um destes séculos houve evoluções incríveis!
    Obrigada pela partilha!

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  3. Olá Rodrigo,
    Pois, hoje todos temos esse problema, quer seja em casa quer seja a falar em público, mormente para os mais novos. O Prof Daniel Sampaio, no seu último livro sobre esta matéria, apenas aconselha que se negoceie com eles. Por exemplo, em casa à refeição e noutras (breves) situações não há Tm. Mas, e quando são os próprios adultos (alguns) a violar a regra? Mas, e nas aulas, como se negoceia? Vivemos um fase de transição em que ainda não sabemos como enfrentar estas situações. Mas lá iremos. É preciso paciência. Muita!
    Abraço,
    JG

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  4. Gostei imenso, e identifiquei-me totalmente! Tanto nas aulas do curso de licenciatura, como muitas vezes nas do mestrado já para profissionais…
    Concordo:” a responsabilidade é minha”, MAS TAMBÉM ” a responsabilidade é deles”!

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  5. Olá Rodrigo!

    Mais uma vez, como sempre é um prazer enorme ler o teu ” A Pulsar”.
    Religiões e crenças à parte, partilho contigo e com todos um texto que recebi do nosso amigo Nuno Amador e que penso que se enquadra neste tema perfeitamente. A mim ajudou-me a refletir sobre isto e a terminar de ler o texto com uma sensação parecida à que tive quando te li.

    Espero que gostes/em.

    https://pontosj.pt/opiniao/da-necessidade-do-vazio/

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  6. Pois é meu caro Rodrigo. O assunto é da maior atualidade e complexo por relatar o habitual em muitas aulas e em muitas reuniões da atualidade. Por mim insisto e aperfeiçoo continuamente metodologias que são diferentes em cada um dos dez/quinze mundos onde estou envolvido. Com estudantes (ensino superior) estou sempre de pé, cuido do traje e do penteado e interligo expressões orais com apresentação de objetos sobre os assuntos, fazendo sempre perguntas sobre o tema da aula; com grupos de trabalho, género comissão disto ou daquilo, procuro escutar e construir (trazer para a mesa) assuntos novos, metodologia que resulta na maioria dos grupos onde estou envolvido como amanhã de manhã vai por certo acontecer na reunião dos órgãos sociais aqui do CDPA de que faço parte (conselho geral); num dos grupos muito poucos me gostam de ouvir (escutar) sofro, mas continuo a participar mesmo sabendo que não se é desejado, complexa esta metodologia que tem inspiração no projeto religioso (igreja católica).
    Regressei há pouco dum congresso de dois dias (UTAD/Vila Real) onde apresentei uma comunicação. Neste congresso (dias 19 e 20) assisti a dezoito intervenções e participei numa, hoje 14h30. Dos dezoito intervenientes apenas um falou de pé, mas no púlpito (ambão) e lendo demasiado, os outros dezassete falaram sentados na mesa habitual e sempre lendo demasiado. Comigo não aconteceu darem preferência a telemóveis e outros dispositivos, mas houve atenção, falei sempre de pé face ao PPS mostrando livros da personagem que estava a apresentar e cumprindo ao segundo os 15 minutos que o moderador me destinou.
    Por mim, desculpa, considero que a culpa é de quem tem a missão de apresentar a aula, a comunicação, a opinião e julgo que podemos provocar mudanças no auditório em especial no ambiente do ensino superior junto de estudantes e dos colegas que em congressos e aulas do género das apontadas pelo Rodrigo de um modo geral comportam-se como o Rodrigo descreve.
    Enfim no caso do Rodrigo, para já, talvez seja de assumir, “Mais importante ainda é continuar o longo caminho de cuidar das minhas feridas, para que a dor não interfira na minha capacidade de estar presente comigo próprio”.

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