É como dar uma feijoada a um bebé

“Papá, quando é que eu tenho um telemóvel?”

A pergunta começou aos oito anos e era inevitável. Rodeado de crianças com telemóveis nos recreios, crianças com telemóveis à mesa e até com telemóveis enquanto andam atrás dos pais na rua, o Leonardo começou a ansiar por aquele paralelepípedo mágico que enfeitiça os adultos.

Tal como muitas perguntas que os nossos filhos nos fazem, esta também não vinha no manual. Ai, se houvesse um manual! Eu só tive um telemóvel com vinte e tal anos e era um tijolo que só dava para fazer chamadas. Quando é que se dá a uma criança uma máquina com o poder de a ligar ao mundo e com o poder de a remover do mundo?

Em busca da autonomia

A primeira vez que o Leonardo tomou banho sozinho, tinha cinco anos. Não foi uma decisão muito ponderada. Foi mais uma tentativa arriscada, a ver se já era uma possibilidade. Ele deliciado aceitou a ideia. Claro que gastou metade do frasco de champô, e não se lavou decentemente. Foi um custo baixo para a possibilidade de ele passar a ser autónomo no banho.

A primeira vez que o Leonardo e a Sofia saíram sozinhos de casa, tinham nove e oito anos e foram juntos comprar farinha Maizena ao supermercado, um quarteirão ao lado. Também aconteceu por acaso. Chegámos a casa e descobrimos que não tínhamos a farinha que eles tanto precisavam para uma das suas mirabolantes experiências. (A nossa casa é onde, juntamente com os primos, se fazem experiências que explodem até ao teto da casa-de-banho). Então eu, cheio de coragem (e de medo), disse-lhes “tomem dinheiro e vão vocês comprar que eu tenho de fazer o jantar”. Eles olharam para mim num misto de excitação e ansiedade e foram. Um minuto depois de saírem, eu saí também. Segui-os escondido atrás dos carros, do outro lado da rua. O meu coração aos saltos. Os meus filhos estão sozinhos no meio da rua! Sim, eu sou meio-pai-galinha. Quando regressaram, já eu estava de volta dos tachos a assobiar. Tinha tudo corrido bem.

A vida dos nossos filhos está repleta de momentos destes em que nós sem sabermos muito bem se já está na hora, confiamos no instinto e lançamo-los à vida. Acredito profundamente que a minha função enquanto pai é educá-los para que um dia saiam de casa e se tornem adultos felizes e independentes. E ainda assim, nisto dos telemóveis sinto-me inseguro.

Dar uma feijoada a um bebé

Quando eu tinha dezasseis anos li A insustentável leveza do ser do Milan Kundera. Pareceu-me uma história banal. Sem ação, nem fantasia. Não me soube a nada. Muito mais tarde percebi que eu não tinha maturidade, nem experiência para aquelas palavras. Elas simplesmente não tinham ressoado na minha pessoa. Acho que também é assim com a comida. O nosso paladar vai sendo construído a partir de simples sabores e texturas até que esteja pronto para uma bela feijoada. Se a dermos a um bebé, não só ele não a vai apreciar, como o poderemos traumatizar para o resto da vida. (Milan Kundera não me traumatizou, felizmente).

Tenho utilizado esta metáfora para explicar aos meus filhos que tudo tem um tempo – terem um telemóvel prematuramente é como dar uma feijoada a um bebé. Recentemente decidimos que o telemóvel será a prenda de entrada no quinto ano, mas eu continuo com receios. Se eu, que sou adulto, tenho dificuldades em ter uma relação saudável com esta máquina pseudo-quasi-omnisciente sempre-presente, como será com os meus filhos? Talvez o caminho seja aceitar que simplesmente eu não sei e confiar que eles saberão.

16 opiniões sobre “É como dar uma feijoada a um bebé

  1. Amigo Rodrigo, mais uma vez revi-me na tua dúvida educacional… Fizemos a mesma pergunta a nós próprios (eu e a Cláudia) quando a Laura foi para o 5º ano, perante tanta pressão social (afinal seria a única da turma a não ter telemóvel), mas mesmo assim considerámos que ela tinha que passar por essa privação durante alguns meses para, depois de conquistada a tal “maturidade” receber o tão ansiado paralelepípedo mágico na altura do aniversário em Abril. Confesso que no início do ano lectivo foi duro (principalmente para ela), mas também acredito que ela entendeu a nossa intenção e o facto de não a estarmos a privar do telemóvel por não gostarmos dela ou por não o merecer, mas antes porque queríamos que aprendesse algo importante para toda a vida… é preciso saber esperar e um pouco de frustração, a certa altura, nunca fez mal a ninguém! Espero ter contribuído de alguma forma com a minha partilha! Grande abraço!

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  2. Obrigado pela tua partilha Tiago. Ajuda saber que não estamos sozinhos. Um pouco de frustração é realmente importante, especialmente com os telemóveis que são um verdadeiro escape à frustração no dia-a-dia.

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  3. Rodrigo, revejo-me na tua reflexão. As minhas filhas dizem que só vão ter um telefone quando fizerem 18 anos… era o que lhes dizíamos!! 😀 Entretanto a mais velha entrou para o 5º ano em Setembro passado e começou a pressão. Cerca de metade da turma tinha já telefone em Setembro, quando chegou o Natal já eram mais de metade da turma…
    Dissemos-lhe que lhe poderíamos comprar um telefone como o dos avós… a resposta foi: “Desses não quero!! Não dá para tirar fotos nem para ouvir música!!! 🙂
    Nesses meses o assunto foi bastante discutido entre nós os pais e com ela e decidimos esperar até ela ter alguma maturidade para utilizar o aparelho (e respeitar a privacidade dos outros não tirando fotos nem fazendo vídeos dos amigos, etc…) e responsabilidade para cuidar do aparelho substancialmente caro… as amigas já deixaram cair o smartphone inutilizando-o…
    Resultado: ficou bastante frustrada com a decisão que tomámos em família mas aceitou e compreendeu… e nunca mais falou disso, mas acho que lá no fundo aguarda ansiosamente pela entrada no 7º ano/12 anos (data que decidimos em família voltar a discutir o assunto) para receber o tão aguardado aparelho!!

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  4. Rodrigo, eu acho que o telemóvel é apenas uma metáfora. Irá sempre existir algo que os nossos filhos acham que já têm idade e nós achamos que não, mesmo que resulto possível exclusão de um grupo de amigos. momento em que os pais começam a pensar se não estão a ser demasiado rígidos. o certo? não sei. No entanto o principio que o Tiago usou acho que será SEMPRE um bom principio, seja o primeiro a ter no grupo ou não, que tenha a sensação de que o mereceu.

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  5. Meu caro Rodrigo esta também me parece questão de caso a caso. Os pais podem influir na forma dos filhos utilizarem o telemóvel, mas quanto à oferta, no vosso caso que conheço mal, mas infiro “Vida Familiar Boa”, acho que a oferta pode ser mais cedo, até pelo quarto/quinto ano recordando sempre (tenho 82 anos) os meus tempos da quarta classe. Assumindo uma espécie de conselho/sugestão, admito que possa ser concretizada como inovadora oferta quando a formulação do pedido do muito jovem filho se fizer em termos dos pais a escutarem.

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  6. Olá Rodrigo! Partilho dessas “dores de crescimento” com duas meninas de 9 e 12 anos…..a mais velha teve quando foi para o 5º e a mais nova tem, sem cartão, só para poder jogar e “falar” com a restante família, que está longe, pelo whatsapp.
    Com tudo o que há de bom e mau acho que, desde que nós também consigamos mostrar que é possível usar esse paralelepípedo mágico sem ser uma obcessão….então acho que eles também vão conseguir. Claro que se os pais passam metade do tempo livre no Facebook e afins…..não vão querer que os filhos não o façam, certo?
    Cá em casa é usado com conta, peso e medida, e quando a coisa está a descambar há uma chamada de atenção e elas entendem. Falamos muito sobre os perigos e o alcance de colocar uma imagem na rede que nunca será apagada e que poderá ser usada de forma abusiva e partilhada milhares, milhões de vezes.
    Acho que o caminho não é proibir, e tornar esse objecto ainda mais apetecível. É permitir mas alertando para tanta coisa que isso pode trazer, de bom (podemos comunicar a toda a hora com as primas e tias que estão longe) e de mau (muita coisa). São pequenos, mas vão entendendo e percebendo que há quem use mal, de forma abusiva. E depois é confiar que os nossos pilares irão servir no futuro! Mas proibir nunca me parece a solução. É como aqueles meninos que não podem comer batatas fritas em casa, nunca, e quando vão a uma festa de anos não saem do lado da taça das batatas 😉
    Há tarifários sem dados e telemóveis que conseguimos definir os números para os quais ligam e recebem chamadas. Isso no início é aceitável, depois…..depois, vamos vendo 🙂
    Boa sorte!

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    1. Perfeito, caríssima Célia Picoito, 19, 99 valores (escala de zero a vinte) em tudo o que diz, mas destaco [apenas retirando 0, 01 da nota máxima devido a preferir objeto (AOLP de 1990)], como vital para o nosso Rodrigo Dias:
      “Acho que o caminho não é proibir, e tornar esse objecto ainda mais apetecível. É permitir mas alertando para tanta coisa que isso pode trazer, de bom (podemos comunicar a toda a hora com as primas e tias que estão longe) e de mau (muita coisa). São pequenos, mas vão entendendo e percebendo que há quem use mal, de forma abusiva. E depois é confiar que os nossos pilares irão servir no futuro! Mas proibir nunca me parece a solução. É como aqueles meninos que não podem comer batatas fritas em casa, nunca, e quando vão a uma festa de anos não saem do lado da taça das batatas
      Há tarifários sem dados e telemóveis que conseguimos definir os números para os quais ligam e recebem chamadas. Isso no início é aceitável, depois…..depois, vamos vendo ”
      Saudações da maior consideração.

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      1. Adorei a chamada de atenção ao AOLP….mas eu tenho demorado muito a adaptar-me 😉 Obrigada pela chamada de atenção :-))))

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    2. Olá Célia. A analogia que fazer com as batatas fritas faz muito sentido. Eu concordo com essa possibilidade de se aprender pelo exemplo dos pais. Pode ser que seja um ótimo incentivo a que os pais também tenham uma relação mais saudável com o telemóvel. Obrigado

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  7. Propões hoje uma das questões mais difíceis que se colocam aos pais. No meu último comentário referi-te o último livro do Daniel Sampaio que aborda exactamente esta problemática. E dramatiza-a de tal maneira que ao considerar o Tm uma extensão do corpo, vai mais longe ao dizer que é precisamente uma extensão do cérebro! Ou seja, dar um Tm ao menino é como se lhe aplicasse um implante no cérebro. Talvez isto seja um exagero, mas basta ver como é a relação dos jovens (e até de adultos) com o aparelho para perceber que vivem num mundo paralelo. O Psicólogo aponta datas a partir das quais se pode dar o Tm ao menino, mas penso que cada caso é um caso. Noto, no entanto, que há o problema da circunstância (leia-se envolvência) pois não será fácil adiar algo que aos outros já aconteceu. Os professores, nas aulas, dividem-se entre os que defendem o seu uso até com aproveitamento pedagógico e os que dizem que os põe fora da aula. Enfim, cada um deve decidir de acordo com a pessoa que é o seu filho e o seu próprio entendimento do problema e ainda a sua capacidade de gerir crises. Como sempre a tecnologia traz vantagens e desvantagens, alegrias e perigos.
    Desta vez fui chato demais. Desculpa. Abraço,
    JG

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  8. Olá Rodrigo eu leio sempre os seus artigos acho todos espectaculares independentemente do assunto a que se refira .
    Este por exemplo acho que nas crianças tudo tem o seu tempo e um telemóvel em tenra idade em nada as favorece
    Pelo contrário só as vai baralhar mais,se nós adultos por vezes não sabemos como lidar com estes objetos “mágicos ”
    Bjinhos Amélia

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