Assim que a minha filha fica entregue na escola, o meu coração acelera ligeiramente. A alteração é tão subtil que os outros pais e crianças que me rodeiam não têm forma de perceber a ligeira excitação que se apodera do meu corpo. Tal como um cão de Pavlov, o corpo antecipa o momento que se avizinha.
Há medida que me vou afastando da escola inicio um ritual matinal dedicado ao deus dos pequenos prazeres. Passo a mochila para a frente, tiro o que necessito, desenrodilho os auriculares, coloco o adaptador USB tipo c para jack 3.5mm e estendo o fio por dentro do casaco. Apesar de já ter feito isto inúmeras vezes, sinto-me desajeitado e dou por mim a pensar em comprar uns auriculares sem fio, mas desisto da ideia pela certeza de que os perderia na primeira semana.
Apaixonar-me por filosofia
Estando intimamente ligado ao meu telemóvel, inicio a reprodução de um episódio do podcast “Philosophize This!” e mergulho no pensamento existencialista de Simone de Beauvoir. É uma caminhada de quinze minutos em modo automático, sem reparar no que me rodeia. A minha mente viaja das palavras às ideias, deslumbrada com a visão de Beauvoir sobre a ambiguidade humana. Quando chego ao trabalho demoro-me uns minutos antes de entrar, tento prolongar o momento de prazer intelectual antes de ser sequestrado pelas exigências profissionais.
Ao longo dos mais de cem episódios que já ouvi, sinto-me a descobrir uma paixão pela filosofia na proporção inversa à rejeição que cresceu na escola. O autor do podcast, Stephen West, fala apaixonadamente da evolução do pensamento humano. E fá-lo através de uma linguagem que me é inteligível. Explica, por exemplo, a proposta de Beauvoir de que não se oferece uma ética a um Deus, utilizando uma metáfora com skates e camiões (é preciso ouvir West a explicá-lo, qualquer coisa que eu escrevesse aqui não faria justiça à sua genialidade). No sentido contrário, o meu professor de Filosofia obrigava-nos a fazer ditados de textos filosóficos a uma velocidade impossível, para que fôssemos obrigados a passar os apontamentos a limpo. Assim acabam por decorar o que é importante porque escrevem duas vezes – argumentava ele.
E assim, sem a barreira da linguagem incompreensível e do profundo desinteresse de quem comunica, abriu-se uma nova possibilidade na minha vida – o pequeno prazer do contacto diário com a riqueza do pensamento humano. E claro, as perguntas começaram a surgir.
O pensamento existencialista
Nos últimos meses tenho estado a acompanhar o pensamento existencialista de Kierkegaard, Sartre, Camus e Beauvoir. A pergunta “qual é o sentido da vida?” ganhou o estatuto de vagabunda e deambula pelas minhas células neuronais. Viaja à boleia de sentimentos, ideias e dores de barriga. Às vezes acampa algures e aí fica adormecida até se lembrar de começar a escavar dentro do meu ser sem pedir permissão.
Fui acordado a meio da noite por súbitas respostas à pergunta-vagabunda. Levantei-me para não as deixar escapar. Quando voltei para a cama, a Carla perguntou-me se estava tudo bem. Onde é que foste? Deitei-me ao seu lado, enroscado, pele com pele. Acordei com um pensamento e tive de o registar. Escrevi o seguinte:
A vida não tem um sentido. Tem todos os sentidos. E cada um de nós é livre para escolher o seu e trocá-lo o número de vezes que quiser. Esta liberdade tem um custo, chama-se ansiedade.
Um exemplo gastronómico
Ser livre é permitir-me viver com a ambiguidade da vida. Quando eu era criança, comia o que havia para comer. Se era solha frita, eu não gostava (quem é que gosta?) e comia. Se era frango assado, eu adorava e comia. Não havia ambiguidade. Eu comia e pronto. Agora que posso escolher sinto a ansiedade de tentar fazer a escolha correta. Devo dar prioridade à minha saúde? Devo reduzir o impacto ambiental? Devo contribuir para o bem-estar animal? Devo aproveitar para me deleitar com os prazeres sensoriais? Devo subtrair-me da escolha e comer o que houver. Não há uma resposta certa. Há uma escolha que é função do nível de consciência que eu tenho sobre a comida e sobre mim. E quanto mais eu sei, mais difícil fica escolher. E o que apetece é não saber e não escolher.
A forma mais fácil que eu conheço de reduzir a ansiedade da escolha é comprar crenças. Há crenças para todos os gostos, e não faltam vendedores. No fim da adolescência tinha a crença de que o importante era comer e beber à grande. Depois tive uma úlcera e comprei a ideia sensata de que o importante é comer de tudo um pouco. Até que começaram a aparecer os alimentos com a etiqueta biológica e eu agarrei-me a essa ideologia. Quando comecei a estudar o sofrimento humano, dei por mim a comprar às prestações uma nova visão ativista sobre a alimentação até que, há cerca de um ano, me tornei vegetariano. Nesta passagem de ano li um artigo sobre o sistema nervoso dos bivalves e decidi abrir uma exceção. Cozinhei berbigão à bulhão pato e comi. Não sei o que me reserva o meu futuro, mas não abdico nem da minha liberdade de escolha, nem da minha incoerência ao longo do caminho.
A pedra é minha
Talvez a vida não tenha um sentido. E também eu seja Sísifo a empurrar a pedra até ao topo da montanha, só para descobrir que, ao lá chegar, a pedra regressa ao ponto de partida e eu volto a ter de a empurrar. Seja qual for a dieta que eu faça, sejam quais forem as minhas escolhas, quando o Sol engolir a Terra (o evento mais trágico-longínquo que me lembrei), tudo não passou de uma pedra a rolar montanha acima, montanha abaixo, sem qualquer significado.
Por outro lado, talvez a vida tenha todos os sentidos e seja ao empurrar a pedra que eu transcendo a ausência de significado. É ao tocar-lhe, ao conhecê-la, com todas as suas superfícies polidas e irregulares, que eu posso aprender a amá-la. Vista de fora pode parecer uma pedra igual às outras. Vista de fora a minha escolha vegetariana pode parecer que é porque está na moda. Visto de fora o meu ritual matinal pode parecer banal. Vista do Sol, a pedra nem se vê. Mas para mim é a minha pedra. Ninguém tem uma pedra igual à minha. Nem igual à tua.
Quando acordei a meio da noite para registar o meu pensamento existencialista, não tinha tido nenhuma revelação. Tinha sentido uma compreensão. A pergunta-vagabunda tinha finalmente regressado a casa, pousado o bastão e descalçado as botas de viajante. Enroscara-se junto à lareira e prometia lá ficar durante uns tempos. Pelo menos enquanto a casa não sofrer um terramoto e ela voltar a partir em busca de novas respostas.
Obrigada Rodrigo. pela partilha. Acho que é transversal à condição humana sentir-se um pouco Sisifo a empurrar a pedra.
Isabel
GostarGostar
Concordo Isabel, e como dizia um amigo meu ao ler o artigo, apesar de as pedras serem todas especiais, há umas mais pesadas que outras. Eu tenho a sorte da minha ser das leves, ou assim parece.
GostarGostar
Obrigada Rodrigo, pela partilha. Adoro ler-te! 😊
GostarGostar
E eu adoro que tu me leias 🙂
GostarGostar
Pois é meu caro Rodrigo, dizes, “Não sei o que me reserva o meu futuro, mas não abdico nem da minha liberdade de escolha, nem da minha incoerência ao longo do caminho.” e tb “a vida tem todos os sentidos”. Portanto continua a profundar os estudos filosóficos, mas sempre orientando os aspetos profissionais e familiares. Quando chegares aos 100 anos vais encontrar muitos outros bens. Nem te conto algumas das minhas experiências vivenciais de agora, ainda aos 82, como por exemplo estar a responder aos 59 e-email de alguma importância que observei depois das 20h10 quando entrei em casa depois de dois dias (uma noite) em Coimbra onde participei numa conferência internacional ontem e hoje. Continua a escrever e a fazer. Talvez vá sendo tempo de voltarmos a almoçar no restaurante Centro Náutico aqui de PA, talvez em março quando começo a “época balnear” aqui ao lado, nessa altura podemos falar de Filosofia (escolhe o assunto e info 15 dias antes do almoço). Curiosamente foi nesta disciplina (agora unidade curricular) onde tirei a classificação mais elevada (dezanove valores)) dos três cursos que fiz na FCSH/UNL de outubro de 1988 a 23 de janeiro de 2006 (defesa da tese de doutoramento) todos no âmbito Ciências da Comunicação. A Filosofia foi no curso de doutoramento (1998/2006) que obrigava a haver aproveitamento em quatro uc, três da área científica do curso e uma doutra área a escolher na altura numa lista de seis. Portanto vale mesmo a pena viver quando temos todo estes mundos envolventes. Até breve. Um abraço da maior consideração.
GostarGostar
Não te sabia filósofo António, mas já desconfiava. Vamos fazer esse almoço acontecer. Um grande abraço
GostarGostar
Olá Rodrigo,
Faz muito tempo que me deparei com as primeiras dúvidas existenciais: quem sou eu? De onde venho? Para onde vou? Fui fazendo o caminho dessa troupe de existencialistas que me atraíram sobremaneira nos anos 60. Era essa caminhada e a do marxismo, com outros actores. A filosofia sempre me tocou e fez gastar muitas horas de leitura, de reflexão e de tertúlia. Mas sempre sem respostas! Não sei qual é o sentido da vida. Nem se tem algum sentido! Acasos e/ou deuses estarão a indicar-me o caminho. Não quero que me aconteça o mesmo que aconteceu ao João Barois. E assim vou andando. Até um dia. E nesse dia, o mais provável é que fique sem saber porque nem existirei para colocar essa questão.
Abraço,
JG
GostarGostar
Olá Jorge. Lá tive de ir pesquisar quem era o João Barois, e descobri mais uma pérola literária que tenho de ler. Obrigado pela tua partilha e por estas migalhas que vais deixando no meu caminho. Abraço
GostarGostar
O sentido da vida.
Sim, a vida tem um sentido. Tem que ter um sentido senão a vida não fazia sentido!
Mas o meu sentio pode nao ser o teu, e o meu sentido ´de hoje não é concerteza o de ontem e poderá não ser o de amanhã.
Acredito que viemos a esta vida (também acredito que temos várias vidas) com um propósito maior.
Ás vezes demoramos um avida a descobrir esse proposito, ás vezes passamos a vida sem o descobrir e temos que repetir a jogada.
Um dia vi um filme com o James Stewart que de chamava “Do ceu cai uma estrela”.
É um classico mas tocou-me imenso e refiro esse filme muitas vezes a proposito do sentido da vida,
É a historia de uma homem que se vai suicidar (James Stewart) e que é salvo por um anjo que precisa ganhar umas asas.
O que o anjo vai fazer é mostrar ao homem o que seria o mundo sem ele.
E então revisita todas as marcas que deixou e ganha um sentido maior da vida.
Acho que o sentido da vida é isso mesmo , é aquilo que deixamos aos outros, as marcas que deixamos diariamente com os nossos gestos e as nossas palavras.
GostarGostar