Ele era o Rei. Aquela praia era o seu castelo. As centenas de pessoas que se espalhavam pelo areal eram os seus súbditos. Um aproximou-se. O seu chapéu colorido sinía com os saltos que dava. Parecia que o chão o queimava. Era o Saltimbanco. Das vestes compridas e coloridas retirou um papel e estendeu-o ao Rei. Juntava ao gesto, um sorriso e um franzir de sobrolho cínico, parecia antecipar a mensagem. O Rei pousou o copo de vodka laranja e num gesto ancestral aceitou o papel e afastou o Saltimbanco. Era uma folha A5, amarela, dobrada meticulosamente em quatro. Confirmando que não estava ninguém à sua volta leu o que estava escrito.
O Rei será morto às duas da manhã do dia vinte sete de Agosto do ano dois mil e três
Olhou o seu relógio escondido debaixo da longa manga da camisa violeta que usava. Os ponteiros desenhados por um italiano de nome sonante marcavam uma da manhã. O Rei sorriu, guardou o papel e regressou ao vodka-laranja.
Noutro local na festa, mais perto das rochas da praia, a Duquesa de Seycheles observava alguém. Os olhos eram fugidios, atraídos por aquele homem que com a coroa na cabeça parecia mais alto que todos os outros naquela festa. Desde o momento em que lhe fora apresentada, que não parava de pensar na cara do seu anfitrião. Nos olhos azuis que a saudavam com um sorriso de desejo. Na boca que lhe dizia que era bem-vinda como quem a convidava para uma noite de amor. Para além da coroa havia algo mais que o distinguia de todas as outras pessoas. Ele não usava máscara. Ela não parava de olhar, não resistia. Todos pareciam insignificantes a seu lado. Todas aquelas feições enigmáticas, gravadas eternamente nas máscaras que cobriam as faces do nariz para cima, assustavam-na. Por isso mesmo decidiu usar uma máscara diferente. Era feita de céu cinzento, não tinha recortes especiais, nem enfeites. As aberturas para os olhos eram rasgadas e na parte exterior descaíam. O contraste entre a tristeza da máscara e a força dos seus lábios vermelho vivos fazia girar as cabeças de quem passava por ela. Ela não estremecia, o seu olhar estava ancorado ao Rei.
“Observar durante tanto tempo a mesma pessoa, não se deve. Trocicolos!”
A duquesa saltou. A voz tinha um tom de falsete que a fez arrepiar, voltou-se. Enfrentava-a o sorriso de quem mesmo em frente de uma morte encontraria algo sobre o qual desdenhar. Era o Saltimbanco.
“Desculpe!?”
O Saltimbanco estendeu um papel vermelho à Duquesa.
“Está desculpada”
Partiu, anunciando-se a cada passo saltitante que dava. O papel continuava com três dobras bem vincadas e com a longa mensagem escrita escondida. Segurava com tanta força num dos cantos que a parte restante flectia. Sentia-se perdida.
Desde que tinha percorrido o caminho de terra que terminava na praia que sentia que tudo era estranhamente sedutor. Os outros súbditos delineavam-se em cores e formas extravagantes. Contrastavam com o vestido preto justo ao corpo que ela decidira usar. Na entrada um dragão gigante esculpido em gelo transportava-a até ao mundo de fantasia de quando era criança. O placar coberto de máscaras. Um delírio de expressões dispostas para cada convidado escolher a face dessa noite. A míriade de luzes que jogava com os brilhos da areia e do mar. O jogo de fogo que suscitava o paradoxo ao nascer do mar. Tudo lhe trazia um fluxo de sentimentos. Crescia o medo de se descontrolar. E por isso tremia ao segurar o papel. Olhou em volta. O Rei observava-a. Com um sinal de cabeça impeliu-a ser arrojada. Sem poder de decisão, o papel desdobrou-se e o que estava escrito arregalou-lhe os olhos. O Rei sorria.
O Bispo ainda antes de ter chegado à festa, já se sentia entediado. Não percebia o objectivo. Tinha transmitido o seu desacordo com a decisão de realizar aquela festa, mas o Rei queria, o Rei fazia. Pensou em não vir, mas o Rei informou-o de que o Saltimbanco trataria de tudo e que existiriam instruções especiais para o Bispo. Especiais! O Bispo já tinha areia enfiada pelas vestes vermelhas acima. Já era tarde e o seu corpo custava a carregar. No dia seguinte tinha uma importante corrida de veículos ultra-velozes. Não tinha tempo para instruções especiais. Nem para festas com pessoas entediantes, cujo conceito de divertimento era dançar e beber até à exaustão e terminar a tomar banho nú dentro de um mar parado. O que é que isto tinha de entusiasmante? O Bispo aguardava que algo acontecesse encostado a um balcão de vidro. Na realidade o balcão era um aquário. Por cima deslocavam-se copos, cinzeiros, garrafas, espalhava-se cerveja derramada, deslizava-se o pano amarelo absorvente. Por baixo, Loriculus vermelho e brancos dançavam à volta de uma rocha, Labroides serpenteavam entre corais deslumbrantes, pequenos búzios descansavam sobre rochas, um peixe-palhaço cúmplice de uma anémona deslocava-se lentamente, subiam bolhas de ar.
Absorto, olhava dois peixes azúis que
pareciam competir por um recorde de velocidade. Até que as instruções chegaram.
Um pequeno papel amarelo dobrado entregue pela mão do Saltimbanco. Leu tudo e
no final sorriu. Pediu-lhe que esperasse e ficou uns momentos a olhar para lá
do aquário. Afinal, a festa sempre seria interessante. Sem dúvida, aquele era
um jogo estimulante. Arquitectou a sua aposta. Seria possível matar alguém
durante uma festa com centenas de pessoas, quando a pessoa já estava à espera
que isso acontecesse? Talvez!
“Interessante! Tem dois papeis e uma caneta?”
O Saltimbanco aquiesceu e entregou-lhe o que tinha sido pedido. Quando o Bispo terminou, dobrou o papel vermelho em três, vincando-o bem entre as unhas e entregou-o. Entregou o outro papel, aberto.
“Para entregar ao Saltimbanco”
“Assim, feito, será”
A Duquesa de Seycheles guardou o papel e dirigiu-se a um bar, cujo balcão era na realidade um gigante aquário. Pediu um gin tónico. Enquanto esperava batia com a mão no topo do balcão, a indecisão corroía-a. Tentou ouvir a calma do mar, mas a música sobrepunha-se. A bebida chegou e ela decidiu-se. Esticou a mão até ao único balde de gelo que se encontrava no balcão. Puxou-o para si. Deixou a pinça metálica repousada e enfiou a mão entre os cubos de gelo. Demorou tempo como se procurasse um cubo especial. Já lhe doíam as articulações dos dedos quando encontrou. Colocou algo na bolsa preta que trazia pendurada no ombro. Depois colocou um pouco de gelo na bebida, um pouco no coração e foi até junto do Rei. Sussurrou-lhe ao ouvido.
“Olá Alteza”
O Rei voltou-se e sorriu com o corpo todo.
“Olá minha Duquesa. O que a traz até à minha presença?”
“Porque é que é a única pessoa sem máscara?”
“Porque é que só existe um rei?”
“Porque o Homem é um animal egoísta”
“Seycheles é longe, o que faz aqui Duquesa?”
“Fui convidada”
“Dança?”
Ambos pousaram o copo que tinham na mão. Ele envolveu-lhe a cintura delgada e levou-a para junto da pista de dança. Juntaram-se aos corpos que subiam e desciam ao som da música. Ela era uma cobra, os ombros pareciam deslocados ao movimentarem-se. Ele era um tigre, movimentos lentos, precisos. Na pista, ambos eram predadores. Ele beijou-lhe o lóbulo da orelha, a bochecha. A boca estava sempre fora de alcance. Ela afastava-se. O tigre atacava e encostava-se à cobra. Ela de olhos tensos seguia-lhe todos os movimentos. Esperava uma investida. Então a música parou.
“O fogo de artifício começará dentro de momentos”, gritaram as colunas de som espalhadas pelo areal.
“Vamos buscar uma bebida para ver o fogo de artifício?”, perguntou o Rei.
“Gin tónico”, respondeu a Duquesa.
O Rei parou um empregado que passava e pediu dois gins. A Duquesa afastou-se um pouco, olhava distraídamente o mar. Sem música o murmúrio constante era finalmente audível. Os olhos do Rei deambulavam entre os lábios carnudos e os calcanhares nús dela. Estranhando a demora ela voltou-se. Ele reagiu prontamente.
“Aqui vêm as nossas bebidas”
O empregado atravessava a multidão com a dextreza de um patinador de gelo. Bandeja na mão elevada acima das cabeças, mantinha os copos secos por fora.
“Aqui estão sua majestade”
Cada um pegou no seu copo.
“À nossa”, brindou o Rei
No momento em que chocaram os copos uma explosão encheu o ar. O fogo de artício começava. Ela levou o copo aos lábios. Ele parou. Pensava. O fogo de artifício estava previsto para as duas da manhã. Veneno! Pensou em pousar o copo, mas decidiu fingir que o levava aos lábios. A duquesa, impelida a olhar para os clarões no céu, nem se apercebeu da hesitação do Rei. Deu o primeiro gole com prazer. Rapidamente sentiu o mundo ficar hostil. Percebeu que quem lhe tinha enviado o papel, informando-a que o Rei planeava matá-la, falava verdade. A primeira convulsão eliminou todas as dúvidas. Os olhos do Rei que a fixavam sem surpresa inflamaram-lhe a raiva necessária para seguir a sugestão proposta no mesmo papel. Tirou da sua malinha uma seringa gelada e espetou-a onde conseguiu. O Rei gritou estupefacto. Antes de perder os sentidos ainda conseguiu murmurar.
“Sua puta!”
Os súbditos abstraídos do mundo terreno, deslumbravam-se com o mundo que se criava a cada instante reflectido no mar. Ninguém via o Rei estendido no chão e a Duquesa encolhida estremecendo com convulsões. O Saltimbanco aproximou-se. Com dois dedos verificou a pulsação no pescoço do Rei.
“Xeque-Mate! Vitória para o Bispo”
O Bispo desencostou-se do gigante aquário e aproximou-se. Portava um sorriso de vitória. Agachou-se e sussurrou para a Duquesa.
“Não se preocupe daqui a meia hora já não sentirá nada”
Ela não conseguia falar, sentia que lhe trituravam o estômago. O Bispo acenou para o Saltimbanco. Agarraram no Rei pelos ombros e levaram-no pelo caminho de terra. O Bispo ria enquanto falava.
“Roupa exuberante. Festas na praia. As mulheres são a tua perdição. Davas um Rei perfeito. Pena que a partir de agora eu seja o Rei e tu passes a ser o Saltimbanco”
*A imagem que acompanha o texto foi criada pelo artista Paim das Neves, inspirado pelo conto.