Abro os estores e deixo o sol de verão inundar o quarto. Sento-me na borda de uma das camas das crianças, escolho um livro, abro-o e começo a ler uma história. Meio estremunhadas, meio excitadas, elas levantam-se e desejam-me boa noite. O Odranoel é o primeiro a vestir-se: t-shirt do avesso com a etiqueta virada para a frente e calções de banho ao contrário com os bolsos de fora. Um a um dirigem-se para a casa de banho para lavar os dentes. O Ocsav, mais ousado, vai de costas. Sentam-se todos à mesa para jantar e eu sirvo uma sopa. A reação é conjunta – Argh! É um misto de repulsa e sentido de missão. O tradicional dia ao contrário tem destas coisas – tanto é divertido como estranho.
No dia ao contrário eu sou o Ogirdor. É um dia horrível (ou seja maravilhoso) em que nos divertimos a inverter tudo o que nos lembramos e conseguimos. As refeições acontecem pela ordem inversa, andamos com a roupa vestida do avesso, chamamo-nos de trás para a frente e jogamos jogos com as regras invertidas. Por exemplo: nas escondidas só uma pessoa é que se esconde e todos os outros procuram. Sempre que alguém encontra quem está escondido junta-se a ele, até que no final, perde quem ficar sozinho a procurar. Olhar ao contrário para o mundo é um exercício criativo e libertador que todos, primos e amigos, adoram. Especialmente quando se lembram de que podem ser eles a “mandar” nos adultos.
Muito com pouco
Há algo de delicioso nesta possibilidade de pôr em causa aquilo que é a norma. O meu lado maroto vem ao de cima e sinto uma excitação associada à transgressão. O mais interessante é que não estou nem a transgredir nenhuma lei, nem a interferir com a vida de ninguém. Estou simplesmente a fazer diferente do que é suposto. E tenho um grupo de pessoas, crianças claro, que não me julgam e alinham na brincadeira. De repente, aquilo que para a maior parte das pessoas parece estúpido, para mim é mágico.
A ideia do dia ao contrário foi emprestada do mundo dos campos de férias da Candeia, onde durante muitos anos fui animador. Os meus melhores dias de férias eram sempre passados no meio do nada a animar crianças. Tínhamos apenas tendas, papel de cenário, tintas, fita bófia, muita imaginação e acima de tudo permissão para ser feliz. Fazíamos muito com pouco. Da simplicidade de uns vestidos antigos e umas perucas nasciam autênticas novelas de faca e alguidar. Com uma guitarra e um djembê improvisávamos músicas que se transformavam em hits de verão. Com papel de alumínio e cordel criávamos planetários que nos faziam sonhar.
Nesses campos de férias descobri que, quando me ligo ao outro desde o coração, entro num espaço onde sou feliz com muito pouco. O ingrediente secreto para essa conexão entre corações é aceitar. Aceitar que é ok o outro ser, ter e fazer diferente. E isso implica deixar cair as exigências e simplesmente desfrutar.
Para lá do véu
O mundo está cheio de convenções. Elas ditam o que fazemos, o que dizemos, como nos vemos e como vemos os outros. São ideias que se transformam em crenças e imprimem uma exigência contínua sobre todos nós. Quantas vezes não me senti perdido, até deslocado, sem saber como me comportar em cada contexto onde estava. Dois beijinhos ou um beijinho? Tu ou você? São pormenores que me dificultam as relações. Especialmente porque eu me agarro às minhas convenções como se essas é que fossem as verdadeiras.
Enquanto pai, esforço-me para ensinar o máximo possível do que sei aos meus filhos. Quero que eles aprendam as regras sociais e saibam estar com os soldados e com os generais, mas mais do que isso, quero que consigam ver para lá delas. Quero que saibam que merda é só uma palavra e que conforme o tom e o contexto pode ser ótimo para expressar raiva. O dia ao contrário é uma oportunidade única para ver para lá do véu das convenções e perceber que elas não são reais. Ao inverter as coisas mais básicas e descobrir que o céu não me cai na cabeça, ganho mais espaço interno para colocar em causa convenções que me limitam e assim melhorar a minha experiência humana.
No dia ao contrário divirto-me brincando com os meus filhos, sobrinhos e amigos, mas secretamente, espero que quando forem adultos se lembrem que um dia se vestiram do avesso e comeram sopa ao pequeno-almoço. Talvez isso os ajude a dar permissão uns aos outros para serem felizes.
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“O mundo está cheio de convenções. Elas ditam o que fazemos, o que dizemos, como nos vemos e como vemos os outros. São ideias que se transformam em crenças e imprimem uma exigência contínua sobre todos nós. Quantas vezes não me senti perdido, até deslocado, sem saber como me comportar em cada contexto onde estava. Dois beijinhos ou um beijinho? Tu ou você? Eram pormenores que me dificultavam as relações. Especialmente porque eu me agarrava às minhas convenções como se essas é que fossem as verdadeiras.” Sinto o mesmo, presa a convenções e a crenças que me trazem angústias… Lentamente a compreender, e mais que isso a sentir.. que o mundo é “composto de mudança” efetivamente e não só na poesia. Fazer e ser diferente é possível e permitido. *
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Há uma grande distinção entre compreender e sentir e mudar o sentir é realmente um processo lento. Obrigado pela partilha.
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De facto precisamos de uma rotina e de uma ordem no dia a dia, mas também precisamos de dias assim: ao contrário. Dias de brincadeira entre adultos e crianças. Tantas vezes já não conseguimos brincar com eles, já só lhes contamos histórias (quando contamos) e não da nossa cabeça/imaginação porque ao final do dia isso dá muito trabalho… e quantas vezes lhes dizemos para brincarem com os irmãos (“é para isso que tens tantos irmãos”), primos e amigos como que se lhes tivéssemos dado o suficiente para nos pouparem a brincadeiras… O dia ao contrário é um dia em que os adultos vivem como crianças e as crianças experimentam ser adultos e mandar. Era um dia Candeia mas o mais maravilhoso é tu, Rodrigo, seres Candeia em família. Na última NOC (noite de oração Candeia) rezávamos isso: ser Candeia é uma forma de estar na vida e queremos ser Candeia em Candeia mas também na família, na universidade, no trabalho, com os nossos amigos. Nem todos conseguem… Mas no final do dia [ao contrário] concluímos que cada um está bem no seu papel. Eles voltam a brincar (com os irmãos, primos e amigos) e nós voltamos a assegurar que o mundo continua a girar e que eles podem continuar a brincar! E está tudo bem!!
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Ajuda pensar que em vez de os estarmos a animar, na verdade são eles que nos estão a animar. E é aproveitar agora porque em breve serão adolescentes e terão de passar pela fase em que brincar é para crianças.
Agora fiquei curioso a pensar como será fazer o dia ao contrário quando eles forem crescidos. Será que alinham?
Beijinhos Sofia. Obrigado por seres uma Candeia na minha vida.
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Obrigada Rodrigo por trazeres para a vida dos teus sobrinhos um dia ao contrário 🙂
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É um privilégio ter os sobrinhos connosco. Eu é que fico grato por existirem. O dia ao contrário não tinha metade da piada sem eles. Beijos Mana
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Meu caro Rodrigo aqui está para mim o melhor de todos os outros textos que tive o gosto de comentar. Desta vez parabenizo-me por ter enfrentado novidade do princípio ao fim, nunca me tinha lembrado de tal procedimento nem o tinha visto descrito em outro espaço, livro, jornal, filme, facebook, linkedin, em lugar nenhum.
Claro que fiquei maravilhado retirando de imediato: “Olhar ao contrário para o mundo é um exercício criativo e libertador (…)”; “(…) fazer diferente do que é suposto.”; “(…) permissão para ser feliz.” e ainda, marcante e a merecer ser trabalhado, “No dia ao contrário divirto-me brincando com os meus filhos, sobrinhos e amigos, mas secretamente, espero que quando forem adultos se lembrem que um dia se vestiram do avesso e comeram sopa ao pequeno-almoço. Talvez isso os ajude a dar permissão uns aos outros para serem felizes.”
Estas passagens de “O dia ao contrário” e ainda a retirada de um dos dois comentários anteriores, “O mundo é composto de mudança.”, recomendam que aproveite este belo texto e excelente procedimento familiar do “Ogirdor”. para os adaptar às nossas vivências, Rodrigo jovem engenheiro pai de filhos ainda alunos e este idoso de mais de oitenta anos, avô de cinco netos sendo apenas um ainda aluno uma vez que os outro quatro já são estudantes (dois) e os restantes já o foram e agora estão envolvidos no mundo do trabalho. O ideal seria conseguirmos que outros alterassem comportamentos no sentido de produzir melhorias nítidas não só nos ambientes familiar, profissional e social, próprios, como nos nossos outros mundo mais alargados, pelo menos Portugal, União Europeia e CPLP.
Desculpa Rodrigo fico por aqui por bem saber que dispões de pouco tempo para me ler e ainda menos para haver comunicabilidade entre nós, mas podia exemplificar aquilo que sugiro em termos de nítida e fácil contribuição para ser feliz fazendo diferente.
Obrigado. Parabéns. Continua.
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Obrigado pelo comentário António. É realmente um exercício interessante incorporarmos esta reflexão e os seus resultados no nosso dia-a-dia. Abraço
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Parabens! Realmente faz falta sair do convencional, é bom lembrar que um dia nao vao querer brincar por isso é bom aproveitar mais as brincadeiras e todas a imaginacao que eles ainda teem.
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E depois lembrá-los que podem sempre brincar, mesmo quando parecer que não podem. Abraço.
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Olá Rodrigo,
Sempre estimulante e surpreendente a leitura dos teus textos, ademais com essa experiência limite de criatividade. Por momentos imaginei-me sentado no TEC do C. Avillez numa sessão experimental onde cada actor travestia a sua versão do absurdo.
Admirável!
Abraço,
JG
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Obrigado Jorge. Isso é que é imaginação!
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A eficiência e a eficácia não são resultados naturais do cumprimento de regras e regulamentos! – Mas sim consequência do nosso
conhecimento e melhor pensamento.
“O homem vive a princípio uma vida exterior, e, mais tarde, uma interior. A noção de efeito precede, na evolução da mente, a noção
de causa interior desse mesmo efeito.”
(Fernando Pessoa)
Abraço.
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Olá Olímpio. Eu diria que o homem começa por viver uma vida interior, depois esquece-se dessa e concentra-se no exterior e depois regressa ao interior. Abraço
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Parabéns pela iniciativa, acho que tb a vou adoptar com a minha pequena ❤ Inspirador 😉
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Olá Cláudia. Depois partilha. Abraço
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Um jantar ao contrário também é interessante 😊
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Ideia fantástica. Vou implementar cá em casa. 🙂
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mais uma boa reflexão, mais um passo para termos no futuro mais cidadão de corpo inteiro, conscientes , abrangentes e seres pensantes e respeitadores do pensamento alheio….boa malha. Vou pensar em estipular o dia ao contrário da Familia
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Querido primo, que pena não existir o teu blogue quando a minha filha era pequena!!
És uma inspiração, adoro o que escreves e revejo-me muitas vezes nas coisas que fazes, mas sem a consciência e a clarividência que tu tens! Acredito que também vais ser «pai» de muita gente que te lê e acompanha.
Bjinhos e continua a ser FELIZ!
Paula
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Cheguei aqui através de um link no Face de uma amiga comum, a Susana Anacleto, e adorei! É bom andar assim a vaguear no éter, num Domingo à noite, apenas para espantar o tédio e ser surpreendida por uma pérola. Obrigada aos dois, a quem escreveu o texto e a quem me proporcionou o acesso. Um bom descanso de Domingo e uma boa semana.
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Que bom que te soube bem Sónia. Bom descanso e boa semana. Abraço.
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