O barulho do vento no trigo

Quando fiz trinta e cinco anos, a Carla ofereceu-me talvez a melhor prenda de sempre. Um boião de vidro cheio de mensagens escritas pelas pessoas que gostam de mim. O boião tem uma regra: só posso tirar um papel por dia. Este pormenor é delicioso e bastante frustrante. Por causa deste limite, as minha manhãs ganharam um novo ritual. Junto com o Leonardo e com a Sofia, que estão a torcer para que saia um papel escrito por eles ou por um dos primos, eu tiro uma mensagem e com ela recebo um pouco de amor matinal.

Deixem-me partilhar algumas das mensagens que já saíram do boião:

“Papá querido do meu coração, esta é uma prenda para ti. Por causa que eu nasci e gostei de ti”, da minha filha Sofia.
“No dia em que vires esta mensagem, vamos almoçar fora, liga-me”, do meu sobrinho Vasco que tem 7 anos.
“E porque estamos longe mas quando nos juntamos é como se nos tivéssemos visto ontem, envio-te uma representação de nós para sempre nos miminhos”, da minha prima Joana.

Se tivesse recebido todas as mensagens de uma vez não teria tempo para sentir e nutrir o vínculo que existe entre mim e cada uma destas pessoas. Assim tenho-me surpreendido e comovido diariamente. De manhã quando pego no boião, deixo-me contagiar pela excitação dos meus filhos e volto a ser uma criança que se sente vista e validada por quem a rodeia.

O barulho do vento no trigo

Esta sensação de ser visto está na base dos vínculos que as pessoas criam entre si. Em isiZulu as pessoas cumprimentam-se dizendo Sawubona, o que quer dizer: eu vejo-te. Este cumprimento tem uma sensação inerente de que até a pessoa ver a outra, ela não existe. Um ditado popular Zulu esclarece esta sensação, “Umuntu ngumuntu ngabantu” quer dizer, “a pessoa é uma pessoa através das outras pessoas

Antoine de Saint-Exupéry escreveu sobre este ver-o-outro e chamou-lhe apprivoiser, que em português foi traduzido por cativar que, como a raposa explicou ao principezinho, significa criar laços. Há uma explicação da raposa que sempre me encantou e que, como não a sei dizer de melhor forma, a cito na íntegra:

“Vês, lá longe, os campos de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste. Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo …”

Estes laços são invisíveis e essenciais e como Antoine de Saint-Exupéry escreveu num rasgo de sabedoria: o essencial é invisível para os olhos.

Quando nasci, foram os laços que estabeleci com a minha mãe, com o meu pai e com os meus irmãos que criaram o chão da minha segurança interna. Foi essa segurança que me permitiu pulsar de forma saudável desde um estado simbiótico até um estado de autonomia.

Ao longo da vida continuo a criar laços com outras pessoas, laços que quero que sejam o mais saudável possível. Com esse objetivo em mente gostaria de refletir contigo sobre como é que é possível cativar pessoas, com a sabedoria da raposa que sabe que vai chorar quando o principezinho se for embora e que, ainda assim, se deixa cativar e o deixa partir, sem nada cobrar.

Donald Winicott foi um tipo inglês que viveu de 1896 a 1971 que disse uma série de coisas acertadas sobre a relação entre a criança e os pais. Há duas que eu gostava de incluir nesta reflexão.

Não forçar as necessidades emocionais dos pais.

Quando o Leonardo tinha menos de dois anos tivemos um conflito gigante em relação a um jantar. Acho que nunca me vou esquecer desse momento. Estávamos em Braga e eu queria à força que ele comesse o que tinha no prato. Quando ele se recusava, eu pegava nele e colocava-o de castigo. Ele chorava. Foi muito duro para ambos e eu acabei por ganhar (ou perder). Ele comeu tudo, mas a que custo? Naquele momento o conflito despertou em mim uma rigidez antiga. Agi como se fosse um caso de vida ou de morte. Hoje sou capaz de reconhecer que eu estava a forçar nele a minha necessidade emocional de me sentir aceite através da capacidade do meu filho comer de tudo, uma qualidade muito valorizada na minha família. Vejo diariamente pais a exigirem que os filhos satisfaçam as suas necessidades emocionais, normalmente de forma inconsciente. Por exemplo, vejo a criança que tem de parar de chorar à força de ameaças, pois os pais não suportam o choro, ou a criança a quem se dá tudo, pois os pais não suportam o conflito de dizer que não.

Nos últimos anos percorri um longo e tortuoso caminho que me tem permitido estar mais esclarecido em relação às minhas necessidades emocionais. Com esta lucidez tem nascido uma paz perante a minha não perfeição enquanto marido, pai e amigo.

Os pais suficientemente bons

Winicott criou um conceito que talvez já tenhas ouvido falar: a mãe suficientemente boa. Se não ouviste, então vais adorar. A mim traz-me imediatamente uma redução da ansiedade e ajuda-me a acreditar que vai correr tudo bem com a educação dos meus filhos. A chave da parentalidade suficientemente boa é providenciar um ambiente saudável para a desilusão da criança com os pais e com o mundo. Segundo Winicott é o ambiente suficientemente bom que permite que as crianças sejam capazes de lidar com a imensidão do choque da perda da omnipotência. Os pais perfeitos, que estão sempre lá e são sempre capazes de providenciar todas as necessidades dos filhos, para além de estarem extremamente cansados, estão a roubar aos filhos a experiência da frustração e da raiva. Sem essa experiência num ambiente seguro, ela surgirá de forma inadequada quando começarem a estar num ambiente não seguro.

Acredito que também posso ser um amigo suficientemente bom. Ser suficientemente bom amigo significa que junto dos meus amigos posso ser tudo aquilo que sou, o que às vezes não vai de encontro às necessidades do outro. Às vezes estou zangado, sem paciência, ou simplesmente preguiçoso. Poder sustentar o que o outro está a sentir sem fugir, sem o querer salvar ou reprimir, e ao mesmo tempo cuidar das minhas necessidades, é a chave para uma relação saudável.

O que necessito

Para eu poder cuidar das minhas necessidades tenho de as conhecer. Essa compreensão exige uma lucidez na distinção entre o que necessito e o que quero. Por exemplo, eu quero criar um blog que seja um contributo para uma comunidade e o que eu necessito é de validação. Sempre que eu me sinto validado há uma comoção em mim, um sentimento de que estou em casa. Há uma necessidade a ser satisfeita. Isto não acontece quando estou a criar o blog.

Para compreender esta distinção eu posso utilizar as minhas emoções como um radar para identificar as minhas necessidades. O exercício de meditar em contacto com as minhas emoções, sem apego ou aversão, sabendo que tudo é impermanente, ajuda-me a compreender o que está a provocar a emoção. Esse contacto é uma possibilidade de olhar para a dor sem sofrer com ela e de olhar para a alegria sem me apegar a ela. Ao ser capaz de viver na polaridade da contenção e da expressão da emoção, estarei a pulsar de forma mais saudável.

Assim, em vez de me relacionar por necessidade de ser validado pelo outro, talvez me possa relacionar pela vontade de cativar o outro e assim também eu amar o barulho do vento no trigo.

Se gostaste deste artigo, junta-te ao grupo de pessoas que acompanham de perto o meu blogue. Clica neste [thrive_2step id=’718′]link[/thrive_2step] e deixa-me o teu nome e email. Receberás um email de boas-vindas com o meu contacto.

 

[thrive_leads id=’630′]

17 opiniões sobre “O barulho do vento no trigo

  1. O reconhecimento das minhas necessidade tem sido uma porta que me tem trazido muito crescimento e consciência, principalmente por dois motivos. O primeiro é que ao reconhecer as minhas necessidades, torna-se explícito para mim, que elas são Minhas! E isso traz-me um paz e uma alegria, pela sensação de que está nas minhas mãos cuidar e nutri-las, como se tivesse a segurar um cubo de barro e pudesse fazer dele o que eu quiser, e isso é muito bom. Claro que há coisas que eu ainda não consigo esculpir, mas eu posso treinar, praticar, partilhar e aprender com outros. E segundo, e de uma forma talvez mais confrontativa, tem-me permitido perceber como é que muitas vezes eu por não reconhecer completamente as minhas necessidades, de forma pouco consciente crio sobre-compensações, que me levam de uma forma desviada a ir buscar essa mesma satisfação dessas Minhas necessidades. Para mim é um “work-in-progress” constante, e isso é giro 🙂

    Gostar

    1. É giro mas não é fácil. As sobre-compensações são sempre mais fáceis, apesar de nos trazerem muito mais dificuldades. É um daqueles paradoxos da vida. Obrigado pela partilha. Muito pertinente esta questão das sobre-compensações.

      Gostar

  2. Gostei muito do texto. Os últimos anos têm-me levado a refletir sobre a minha falta de vínculos na infância e como isso influenciou toda uma vida…Realmente precisamos de reconhecer obrigatoriamente as nossas necessidades emocionais caso contrário vamos inconscientemente exigi-las aos filhos, companheiros, amigos, etc…Se as reconhecermos podemos nutrirmos-nos de outra forma que não seja por cobrança a alguém. A minha opinião em relação à necessidade de ser validado é que esta tem a ver com uma certa insegurança relacionada com a auto-estima. Portanto, criar relações pela simples vontade de cativar o outro parece-me o motivo ideal! Obrigada Rodrigo por mais esta bonita partilha.

    Gostar

  3. Deste texto levo bastante para pensar.
    E escreves bem, o que é ao mesmo tempo um bónus para os teus leitores e um desafio para ti, ao colocares a fasquia alta e criar exigência em quem te lê.
    Obrigado 🙂

    Gostar

    1. Olá Sofia.
      Às vezes sinto que há um grande empolamento à volta da meditação. Quase como se tivessemos de ser monges budistas para podermos meditar.
      Tenho descoberto, também com o grupo Move To Be, que se pode meditar de muitas formas e que a meditação ativa
      é uma boa opção para quem não consegue estar quieto.
      Fica o desafio para um dia ires experimentar.

      Beijinhos.

      Gostar

  4. Tive exactamente a discussao por causa do jantar e nunca pensei nela como uma necessidade minha…. surpreendente! E gostei da teoria do Winicott, deixa los crescer… menos ansiedade… Obg! Continua a escrever. abs

    Gostar

  5. Meu caro Rodrigo gostei do artigo pela sua profundidade e oportunidade. Dele destaco como eu [nasci em 1936, casei em 1960, tenho duas filhas e um filho, três netos e duas netas (este conjunto vai dos 14 aos 25 anos)] precisar de mais estudo e talvez debate para me certificar da sua justeza para além de pessoal, ou seja, ser capaz de pulsar em termos de “pôr em movimento – forçar mover-se para a frente” outros.
    Logo no início, “volto a ser uma criança que se sente vista e validada por quem a rodeia”.
    Depois em NÃO FORÇAR AS NECESSIDADES EMOCIONAIS DOS PAIS, destaco a forma como o Rodrigo está a “controlar” as suas necessidades emocionais e na continuação a explicação da “parentalidade suficiente boa” em relação a “pais perfeitos”, Excelente ponto de vista a explicar “relação saudável” no ambiente familiar.Por fim em O QUE NECESSITO, ressalta “Para eu poder cuidar das minhas necessidades tenho de as conhecer” e, para meditarmos sobre como conseguir “pulsar” a principal mensagem do artigo, tenho de destacar, “Sempre que eu me sinto validado há uma comoção em mim, um sentimento que estou em casa”.
    Parabéns pelo blogue que vou acompanhar e comentar. Saudações da maior consideração, António Pena.

    Gostar

  6. Olá Rodrigo
    Acabei de entrar no blogue pela 1ª vez. Não tenho uma ideia formada. Até agora gostei do “barulho do vento no trigo” No fundo um poema ( eu sou poeta) por extenso. Como avô dedicado e com o neto a tempo inteiro irei gostar das tuas abordagens sobre os filhos. Também devo dizer-te, o que já sabes, tens um pai excepcional
    Abraço
    João

    Gostar

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s

%d bloggers gostam disto: