Pele com pele

O Leonardo não tinha pressa em nascer. Passavam-se quarenta semanas e quatro dias, quando a obstetra decidiu induzir o parto. Depois de a Carla estar deitada numa cama da maternidade e de a oxitocina correr pelas suas veias, esperámos dezassete horas para o ver surgir. Nasceu de madrugada, às duas horas e trinta, com o cordão à volta do pescoço. A primeira nota que lhe deram na vida foi de oito em dez no índice de Apgar. Depois de nascer e de estar um minuto encostado à barriga da mãe, foi levado para outra sala. Eu fui atrás dele. Aspiraram-lhe o líquido amniótico que ainda atrapalhava a respiração e deixaram-no ao meu cuidado.

Ali estava eu, a embalar o meu filho de cinquenta e três centímetros nos braços. Uma avalanche de sentimentos e pensamentos inundava-me e ocorreu-me cantar-lhe uma das minhas música preferidas: “E mesmo que sejas pequenino, és uma estrela a brilhar. E no mar serás um belo barco, sempre, sempre a navegar.” Depois de toda a adrenalina do parto, o Leonardo estava calmo. Quando nos juntámos à Carla e o encostámos ao peito dela, como que por magia, ambos sabiam perfeitamente o que era suposto acontecer e o Leonardo começou pela primeira vez a mamar.

Apesar de ter assistido ao parto dos meus dois filhos, só há pouco tempo é que ganhei consciência da drástica transição que todos sofremos no nascimento e da importância dos momentos seguintes. Hoje gostava de te desafiar a refletires comigo sobre como é que essa primeira transição se repercute ao longo de toda a nossa vida.

A primeira grande transição

Imagina que estás numa cápsula super aconchegante. A nutrição chega na quantidade certa, à hora certa. Passas a maior parte do tempo a dormir e a sonhar. Estás em suspensão, rodeia-te um líquido que te mantém à temperatura certa e que garante que nem a luz nem o som que chegam de fora te ferem os sentidos. Estás em segurança. Não há preocupações. Estás tão bem aqui!

Aos poucos percebes que chegou a altura de deixar o Paraíso, o único sítio que conheces. Invade-te uma onda de sensações: entusiasmo, alívio, desespero, medo?

A cápsula começa a expulsar-te, e tu, que até gostas de aventuras, atiras-te de cabeça. Há uma luz ao fundo que te guia, com a ajuda dos movimentos do canal deslocas-te para lá. Felizmente, no teu caso, quem te recebe são umas mãos experientes e não uma pinça metálica. Num instante estás cá fora e nada é como estavas à espera.

A luz é demasiado forte, o som demasiado estridente. Parece-te que berram contigo. Sentes um frio abrupto, que te arrepia. Subitamente sentes algo aterrador. Falta-te o oxigénio. Num curto espaço de tempo, todo o teu sistema vascular tem de ser reconfigurado. Cortaram-te o cordão umbilical cedo demais e tu tens de pôr os teus pulmões a funcionar. Sentes-te em pânico. Tu não sabes como fazer isso. Felizmente, o teu corpo resolve isso por ti. O oxigénio regressa, inunda-te uma catarse e choras como nunca tinhas chorado e como, provavelmente, nunca mais voltarás a chorar. As mãos experientes pousam-te numa superfície para te limpar. Irritas-te com aqueles movimentos rápidos e frios. “Larguem-me”, tentas gritar. Buscas incessantemente a tua cápsula protetora, há-de estar ali algures. Percebes pela primeira vez que há uma força que te prende ao chão. A tua cápsula apertada que estava em permanente movimento, deu lugar a um mundo estático e vasto, tão vasto que tu mexes os braços e as pernas e não alcanças nada. Onde está o teu contorno? Onde está aquele mar que te embalava? O esforço dá-te fome e percebes que não foi só o oxigénio que parou de chegar, foram também os nutrientes que te alimentavam. Num movimento mágico, as mãos experientes depositam-te num colo aconchegante e com a temperatura certa. Ouves o mesmo tambor que marcava o ritmo no Paraíso. Uma voz doce que tu adoras surge para te embalar. Regressa aquela sensação de segurança tão reconfortante, que te apetece chorar de alegria. Os teus lábios aproximam-se de um mamilo e tu começas a sugar em busca de alimento. Todo o teu corpo se acalma. Descobriste um novo cordão que te liga à tua cápsula. Aos poucos o desespero que te tinha inundado desaparece e tu percebes que vai correr tudo bem.

Pele com pele

Infelizmente nem todas as transições terminam bem. Às vezes o bebé não aguenta e perde a vontade de viver. De todas essas histórias há duas que ilustram o poder que o toque da pele tem em reacender de novo essa centelha de vida.

Jamie e Emily Ogg nasceram a 25 de março de 2010 com vinte e sete semanas, separados por dois minutos. Vinte minutos depois do parto, Jamie foi declarado morto pelos médicos. A mãe pediu para se despedir dele e colocou-o sobre o seu peito despido. Depois pediu ao marido para se deitar de tronco nu, junto com ela e Jamie. Pele com pele. Ficaram assim durante muito tempo, a contar-lhe todos os projetos que tinham sonhado para Jamie e a irmã. Quando Jamie começou a dar sinais de vida. As parteiras disseram-lhes que ele estava a morrer e que eles tinham de o deixar ir. Só quando Jamie mexeu a mão e agarrou o dedo do pai, é que todos perceberam que ele iria realmente viver. Hoje, Jamie tem cinco anos e é um rapaz saudável e inteligente que adora brincar com a sua irmã gémea Emily. (a mãe dos gémeos a contar a história)

Kyrie e Brielle Jackson nasceram a 17 de outubro de 1995, com cerca de dois quilos cada uma. Durante os dias que se seguiram, ao contrário da irmã, Brielle não estava bem. Chorava imenso, ficando ofegante e com a cara azulada. Brielle estava a ter um dia particularmente difícil, quando a enfermeira Gayle Kasparian tentou de tudo para a acalmar. Nada resultava, até que teve a brilhante ideia de a deitar na incubadora junto com a irmã. Kyrie num gesto salvador abraçou Brielle. Pele com pele. Nesse momento tudo mudou. Os níveis de oxigénio de Brielle, que estavam ameaçadoramente baixos, subiram. Ela começou a respirar mais facilmente. O choro parou e a cor da pele voltou ao normal. Nas semanas seguintes a sua saúde melhorou progressivamente e ela sobreviveu. O abraço que o bebé mais forte deu ao que estava em apuros ficou registado numa foto conhecida como “The rescuing hug”.

Em ambas estas histórias, o que salvou os bebés foi a mais simples e básica das ferramentas que temos ao nosso dispor: o contacto humano, pele com pele. Estas experiências fora da norma têm ajudado a disseminar práticas como o método “Mãe Canguru” e a partilha de berço entre gémeos.

As coisas que não pomos em causa

Com a evolução da medicina, o parto tornou-se muito mais eficaz e menos mortal. A taxa de mortalidade perinatal desceu de 42,2 por cada 1.000 nascimentos em 1960, para 3,7 por cada 1.000 nascimentos em 2014. É uma melhoria espetacular a nível clínico. No entanto parece-me que ainda temos algum caminho a percorrer a nivel humano, particularmente em melhorar a receção ao bebé.

Todos temos aquela imagem do bebé a soltar um grito de choro desesperado logo após ter nascido. Eu assisti aos meus dois filhos a soltarem esse grito e no momento fiquei contente. Para mim era um grito de vida. Achava que se eles não chorassem, era porque havia algo de errado. Nunca tinha ouvido ninguém pôr em causa essa expressão de sofrimento do recém-nascido. Até que um dia comecei a ler o livro “Streams of Life” onde David Boadella falava da proposta de Frederick Leboyer, um obstetra francês famoso por propor um conjunto de técnicas mais gentis para o bebé. Leboyer acredita que o choro e a tensão corporal dramática não são normal nem saudáveis no recém-nascido e é um sinal de trauma severo à nascença. Com o objetivo de mostrar como é possível realizar partos em que o bebé não sofre, publicou o livro “Birth without violence” em 1975. No livro propõe formas de suavizar a transição do bebé: luz e barulho reduzidos, deitar o bebé no ventre da mãe em vez de o levar para testes, dar um banho uma hora depois do nascimento como recordação da estadia no útero.

Para mim esta nova possibilidade foi fascinante. Até voltei a ter vontade de ter um terceiro filho. Quando questionei amigos obstetras sobre esta minha descoberta, foi-me devolvido que eram questões interessantes, mas que era mais importante garantir que mãe e filho sobrevivessem ao parto. Fez-me lembrar como nos aeroportos todos somos potenciais terroristas.

Enquanto escrevia este artigo pensei noutra coisa que nunca pomos em causa: a resistência que todos temos à mudança. Nós sabemos que essa resistência existe, mas não nos questionamos porque é que ela realmente existe. Porque é que quando a tua vida vai mudar, tu não exultas de alegria? Viva! Vai mudar! Será que há alguma relação com o facto de que quando nasceste não gritaste de alegria por estares finalmente cá fora? De certeza que há. A tua primeira transição ocorreu quando ainda não tinhas pensamento simbólico, não tinhas palavras para verbalizar as tuas sensações. Será que a insegurança e o desconforto que sentes nas transições são um eco dessas sensações primordiais?

All Izz Well

A presença de alguém que nos ama fez toda a diferença quando chegámos a este vasto e desconhecido mundo. O toque da sua pele, o seu olhar, a sua voz foram o chão que nos permitiu acreditar que tudo ia correr bem. Hoje, quando estiveres perante uma mudança, lembra-te disso. Não recorras só a palavras inteligentes para sentires segurança. Busca um abraço, um embalo. Busca um toque que te acalme o coração.

“All Izz Well”, como famosamente disse Rancho em Os 3 Idiotas.

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17 opiniões sobre “Pele com pele

  1. Mas, há um ponto que me baralhei neste artigo: se a mudança é sair da zona de conforto, porque falas em procurar esse conforto para não causar choque?

    Food for thought.

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    1. Boa questão.
      Talvez seja importante a distinção entre zona de conforto e suporte/contenção.
      Quando transito eu saio da minha zona de conforto para o desconhecido. Se nesse desconhecido tiver suporte e alguém que me dê contenção, eu poderei experimentar e exprimir tudo o que existir de forma mais centrada.
      O bebé tem sempre de efetuar a transição, o novo mundo nunca vai ser igual ao que já conhecia. Essa mudança pode e deve ser o mais suave possível. Não acredito nos tratamentos de choque.

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    2. Sabes que depois de ler o teu comentário e o do Rodrigo pensei numa coisa que digo com frequência: se voltar a mudar de País só faço questão numa coisa – mudar-me pra um sítio onde tenha um grande amigo ou família ao pé de mim, daqueles que não tens que explicar quando as coisas te estão a correr mal, que te dão um abraço e te dão um prato de comida caseira em família e fazem com que te sintas em casa num ápice, e como tal, mais seguro 🙂
      Eu adoro mudança, acredito que tudo o que acontece e muda na minha vida é sempre, mas sempre pra melhor. Mas na mudança procuro o abraço, o conforto, como disse o Rodrigo, e não só o busco, como o considero fundamental. Rodrigo, lês-te-me os pensamentos, obrigada 🙂

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  2. Most of my life i felt like homesick for a place that doesnt even exist anymore… that beautiful capsule you described so well in your article fits perfectly with my home’s description 🙂
    When giving birth for the first time and second time, my utérus never opened, was painful for me and baby too; might be that some how i didnt want to give this first (even if seconds) terrorific experience to my boys? Thanks to modern medicine the three of us are here, having the amazing experience of life… Thanks for sharing! Beautiful words!

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  3. Gostei tanto Rodrigo, com o teu texto ajudaste-me a compreender esta necessidade de sentir “mimada” e “nutrida” em muitas situações de insegurança. E de dar de volta

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  4. Pronto voltei a chorar, mas desta vez de alegria
    temos o ponto de partida para a mudança da consciência humana na terra
    Não deixemos escapar a oportunidade de gerar uma massa critica capaz de geral a mudança de Paradigma

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  5. Gostei bastante do texto, no entanto tenho uma opinião ligeiramente diferente.
    Essa “mudança” no momento do parto, não é de livre arbítrio… e lembrem-se que o recém nascido, tal como todos nós (às vezes inconscientemente) receamos o desconhecido e procuramos sempre a zona de conforto.
    Na grande parte das vezes em que somos confrontados com uma mudança brusca na nossa aparente realidade, temos medo do que vamos encontrar pelo medo do desconhecido, apenas sabendo que o que existe “do outro lado” não fez, não faz, nem tínhamos tendência para que fizesse parte da nossa realidade antes da mudança, por nos sentirmos confiantes em sítios conhecidos.
    Podemos pensar no reverso, por exemplo… a morte.
    A grande maioria de nós receia esse momento por não o conhecer, mas tem consciência que é um momento de mudança. Quase se pode dizer que temos consciência dessa mudança e de tudo que dela poderá advir, bom ou mau, e conseguirmos assimilar que nos poderá ou não fazer bem, ao contrário do recém nascido que além de não ser consciente de outros “lugares de vida”, não consegue autonomamente, no meio da mudança, fazer algo para minimizar o desespero.

    Sintetizando, o problema da mudança, é a consciência, ou a falta dela.

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  6. Olá Rodrigo gostei muito de te ler neste artigo e de acompanhar na reflexão sobre o trauma do nascimento e o seu impacto na nossa relação com a mudança. Na verdade, mesmo quem tem mais facilidade em aceitar e gerir a mudança, por vezes é confrontado com o receio do desconhecido e, confrontado com mudar ou permanecer no seu “casulo”, decido pelo segundo. Eu penso que a idade também influencia essa gestão. Sinto que, tendencialmente, as pessoas mais novas aceitam melhor a mudança, não tendo por vezes todas as ferramentas para a gerir da melhor maneira, ao passo que as pessoas com mais idade, têm uma tendência maior em protelar essa mudança, ou sem permanecer no seu mundo conhecido.

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  7. Deveria ser óbvio para todos nós adultos pensantes que nascer ‘como é habitual’ é uma experiência nada gratificante para o recém-nascido e que certamente se questionado sobre isso e se possível fosse, não desejaria alguma vez repetir. Muito bem descrita e escrita a transição entre as vidas intra e extra-uterinas. E o contacto pele com pele por todas e mais alguma razão faz, a meu entender, com que se desenrolem pequenos/grandes milagres. Mãe de três nascidos em casa e que, de facto, não tiveram necessariamente que chorar para começar a respirar! Tiveram a sorte de nascer para o mundo em ambiente tranquilo e de terem imediatamente contacto com a minha pele!… Grata Rodrigo por este artigo. Vou estar atenta…

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  8. Olá Rodrigo! Mais um texto muito interessante e que dá que pensar.. O problema é que o medo da morte, das doenças, das deficiências, do sair da norma é maior que a alegria em viver verdadeiramente. Acho que se encararmos de outra forma a vida/morte (a forma com olhamos para uma influência a outra) poderemos realmente VIVER e não apenas prolongar a vida. Obrigado 🙂

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  9. Já conhecia as historis desses bebes que são incriveis, a importacia do contacto.
    Faço Biodanza á 3 anos e reaprendi a ter esse contacto com pessoas de quem nada sei. Chamamos “continente afectivo” a esse espaço onde podes ser tu sem julgamentos.
    Quanto à resistencia `mudança é natural do ser humano mas pode ser “treinada”
    Grata pela reflexão
    Helia

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