Eu tinha nove anos quando dormi a primeira noite numa camarata partilhada com mais de oitenta miúdos que não conhecia de lado nenhum. Ao desligarem as luzes a escuridão não foi total. Algumas das lâmpadas mais fracas, aquelas a que chamavam vigias, mantiveram-se ligadas ajudando a afastar os fantasmas noturnos. À minha direita, do outro lado de um armário de metal pintado de verde tropa, dormia o Tiago. De desconhecido ele viria a tornar-se um dos meus melhores amigos, tal como muitos dos outros que dormiam nas quatro fileiras de camas impecavelmente alinhadas. Naquele primeiro dia, tudo me parecia uma grande aventura. As fardas, os espaços gigantes, os novos amigos, andar a marchar de um lado para o outro, fazer a continência… Algumas semanas mais tarde, à noite, eu viria a chorar baixinho com saudades de casa. Esse choro continuaria a aparecer em diversas ocasiões, até ao dia em que deixou de acontecer. Tal como uma ribeira que seca e ninguém da aldeia sabe explicar exatamente porquê, apesar de todos terem muitas teorias. Os meus primeiros tempos de internato foram das coisas mais difíceis que eu fiz na minha vida. E, ainda assim, não desisti e continuei a estudar no Colégio Militar até ter terminado o décimo segundo ano. No meu último dia naquela instituição, voltei a sentir as saudades de casa invadirem-me e a ribeira voltou a transbordar, mas a casa entretanto era outra.
Desistir ou não desistir
Os meus filhos não foram estudar para o Colégio Militar, mas não é por isso que não têm tido de enfrentar escolhas na vida em que, depois de passada a primeira ilusão, se deparam com uma realidade difícil, que lhes dá vontade de desistir. Enquanto pai, observá-los a lidar com essas escolhas é um desafio enorme. Se por um lado, as vozes estóicas dentro de mim dizem que é importante eles não desistirem, pois só assim irão desenvolver o seu autocontrole e a sua firmeza perante a adversidade; ou como a tia Berta em “A imperdoável escolha de Black” dizia:
para sobreviver à tempestade é preciso rumar em direção às ondas, por maiores que sejam.
Tia Berta
Por outro lado, as vozes epicuristas dizem que às vezes faz sentido desistir, pois há dores que se aguentam por causa dos desejos errados e que o importante é buscar a serenidade interna.
Enquanto estas vozes se degladiam cá dentro, eu dou por mim a dizer coisas como Nesta família não se desiste para, logo depois, me recordar de como desisti de uma das três disciplinas a que me propus fazer em Bolonha. Ou dou por mim a queixar-me Já chega de passarmos as manhãs de sábado a respirar cloro numa piscina para depois me recordar de como aguentei três meses a acordar às quatro da manhã todas as terças-feiras para regressar de Londres por causa de duas horas de um curso que escolhi fazer lá às segundas-feiras à tarde.
A minha incoerência entre dizer aos meus filhos que não podem desistir e dizer-lhes que podem deixa-me perdido. E ao escrever esta frase percebo que apesar de não ser fácil, ser pai não é algo do qual eu alguma vez pense em desistir. E esse pensamento traz-me luz para o problema.
Escolher as batalhas
Parece-me que a solução está em ensiná-los a escolher as batalhas pelas quais vale a pena lutar. Em vez de proferir chavões como Nesta família não se desiste! talvez seja mais útil escutar o que realmente se passa em cada situação e ensinar os meus filhos a navegar pelas suas emoções e pensamentos, não os deixando desistir só porque sim, nem aguentar só porque tem de ser. Isso implica estar presente para que não se sintam envergonhados por desistirem, nem abandonados a enfrentar a intempérie.
Ao escrever isto recordo-me de quando, na primeira classe, dois matulões do quinto ano me batiam e estrangulavam todas as manhãs. Eu não dizia nada em casa e aguentava. Aos poucos fui perdendo a vontade de ir para a escola. Os meus pais, preocupados com a minha súbita tristeza, acabaram por perceber o que se passava e foram à escola resolver o assunto. Os matulões nunca mais me chatearam. Sem pais atentos ao que realmente se passava, eu ter-me-ia, provavelmente, afogado a tentar enfrentar ondas que eram demasiado grandes para mim.
Isto significa que quando peço aos meus filhos a coragem de não desistirem do que é realmente importante, tenho de contribuir com a minha presença, como uma rede de segurança, com a distância necessária e suficiente, para que possam cair por eles, mas não se magoar gravemente. E no meio de todos os estímulos com que somos bombardeados, é fácil falhar os momentos importantes. Imagina o seguinte:
Um pai. Uma filha. Uma casa de campo.
A casa tem um jardim com uma vedação. Para lá da vedação fica uma planície com uma colina e no seu alto há uma árvore enorme, com longos ramos e farta folhagem. Os locais chamam-lhe a árvore da vida. A filha pergunta ao pai se podem ir até à árvore. Saltam juntos a vedação e vão pelo caminho a conversar sobre os sonhos dela. O pai tem a mão nas costas da filha, protegendo-a, aconchegando-a. Ao chegarem à árvore, ela diz entusiasmada que gostava de a escalar, mas logo a seguir surge o medo. Não sabe se é capaz. Ainda caio a meio. O pai diz-lhe que está ali com ela, para ela tentar. Vais ver que consegues. Incentiva-a a não desistir sem tentar. A filha sobe para cima do primeiro ramo e olha rapidamente para baixo. Vê o pai tranquilo a olhar para ela. Respira fundo e continua a escalar. Enquanto sobe agilmente, o telemóvel escondido no bolso do pai começa a vibrar. Instintivamente ele leva a mão ao bolso e nessa fração de segundo há uma decisão a tomar. Atende, pois pode ser importante? Ou não atende e mantém-se presente no desafio em que a filha se lançou?
Quando imaginei esta cena, dei por mim a refletir nas vibrações da vida que me distraem dos desafios dos meus filhos. Também dei por mim a revisitar momentos em que ignorei o telemóvel e me mantive presente olhando orgulhosamente para a altura que ela temerosamente já alcançou.
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Foi sempre a dúvida na educação dos meus filhos e é ainda hoje a dúvida quando apoio pessoas, amigos ou não, no seu desenvolvimento pessoal e profissional.
Quando deves dar “um empurrãozinho”, o tal incentivo que faz a diferença ou quando deves deixar ir e admitir que não tens controle sobre tudo e que cada um tem o seu momento?
Sim concordo que deves escolher as batalhas que queres travar porque não podes travar todas.
Também acho que o medo só se combate enfrentando-o, não há outra maneira, é se desistimos, se deixamos que ele se apoderae de nós ele cresce.
Mais uma vez o ter um ambiente de confiança à nossa volta sejam pais ou mais tarde amigos, ajuda a tomar decisões, certas ou erradas, e as perder o medo inevitável de falhar.
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É muito relevante o aspecto do medo. O medo é um farol que nos pode iluminar o caminho, mas também pode cegar se a luz for forte demais. Há que aprender a dançar com ele e o adulto pode ter esse papel, de mostrar como é que se faz perante o medo.
Obrigado pela tua partilha Hélia.
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Igualzinho a mim lá em casa. “não desistir!”
Agora que penso nisso penso na pressão que isso põe nos miudos. Obrigado pela partilha!
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Obrigado também a ti, por partilhares.
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Meu caro Rodrigo este texto é muito difícil de comentar, para mim está todo certo, é assim mesmo, no entanto insisto em dois pontos:
“o importante é buscar a serenidade interna” e, pouco depois, “Parece-me que a solução está em ensiná-los a escolher as batalhas pelas quais vale a pena lutar”. Agora, nos meus 83 anos, como avô de três rapazes e duas raparigas, o mais velho, rapaz de 39 (casado) e a mais nova 17 que agora iniciou o seu curso superior, olho para o que fiz como pai ficando satisfeito. No entanto estou a salientar apenas uma valência, que cada vez mais desejo que se concretize em todos os seres humanos, para já nos portugueses, conseguir quinze anos de estudo/aprendizagem/aquisição de competências, ou seja tudo fazer para permitir que filhos e netos ingressem, frequentem e terminem, cursos da sua própria escolha em ambientes favoráveis que de certo modo possam ajudar, ou até em alguns casos substituir, a família. Meu caro Rodrigo agora pormenorizar os melhores comportamentos do pai para atingir aquilo que ele próprio gosta!!! O que tenho a dizer ao Rodrigo Vieira Dias é que o melhor é mesmo ele próprio viver com serenidade interna, escolhendo as atitudes pelas quais, ele próprio, de agora até aos mais de 100 anos que vai viver, considere que vale a pena lutar.
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Sempre uma perspetiva importante. Tenho um amigo que me costuma desafiar a fazer as coisas como se eu fosse viver para sempre. E para mim isso remete-me em pensar de forma sustentável na minha vida e não de forma destrutiva. Escolher aquilo que pelo qual vale a pena lutar.
Obrigado António.
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Oh Rodrigo, este texto tocou-me mesmo muito, é como de súbito te conhecesse muito mais e percebesse a (bonita) pessoa que és em adulto.
Apetece-me dar-te um abraço! Gosto de ti. Muito.
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E eu de ti Ana.
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Olá Rodrigo, fujo quanto posso a decisões drásticas. Perante um mesmo caso da vida uso a liberdade de decidir . Creio que nunca disse Nunca desistas. Defendo que se lute até onde for possível, sem fazer perigar outros valores mais importantes. Excepto claro em situações limite: nunca desisto de ser pai ou avo. Abraço.
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Boa noite Rodrigo… Tanto que me revejo nos teus textos que por vezes é me difícil ter palavras para o comentar. Obrigado por mais esta partilha e por mais este “alargar de horizontes” com a tua vivência. Cá em casa também por vezes é difícil compreender se é para avançar mesmo com medo, se vale mais a pena, desistir… Ultimamente temos tido várias batalhas que no fim de muito refletir em família se optou por avançar. Mas antes desse avanço foi criado um “cordão” de amparo, segurança e amor. Como mãe sinto o meu coração apertado por determinadas escolhas, apetece me a mim, desistir, contudo se não permitir que eles escolham, estou a barrar lhes vivências importantes do seu crescimento. Assim, abro os braços e procuro amparar a queda (se a houver) e por outro lado alegro me quando eles conquistam o que os faz feliz, mesmo que isso passe pela reflexao/ decisão de desistir. Obrigado. Um abraço apertado. Catarina
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