Há muito tempo que não acordava sem vontade de sair da cama. Da cozinha chegava o som dos pratos a serem colocados na mesa. Alguém estava a tomar duche. Parte de mim queria amuar, dizia, ok, já chega, está bom, não quero mais… As rodas dentadas da nova rotina familiar estavam em marcha e a mim só me apetecia saltar o dia, escondido na cama e talvez voltar a acordar no meu mundo antigo, onde eu via diariamente as pessoas em carne e osso, e não achatadas num vidro com uma voz dependente da largura de banda. Um mundo onde ainda nos abraçávamos.
Dois dias antes tinha acordado ansioso com uma sensação de urgência que se infiltrava por todos os tecidos dos meus músculos. O meu corpo estava alerta e a minha mente dizia: faz qualquer coisa. Mas o quê? Não posso sair de casa. Continuo a trabalhar. Estou a ajudar no covid.pt. Temos comida. As crianças estão bem. A avó e a mãe também. O que é que é suposto eu fazer mais? O diálogo cá dentro era inócuo. A respiração mantinha-se acelerada, o coração inquieto. A ginástica matinal não ajudou. Não consegui sequer terminar o treino. Sentia-me fora do lugar onde era suposto estar, sem saber que lugar era esse.
Na semana anterior eram oito da noite quando saímos da autoestrada e voltámos para trás. O carro ia cheio, um pai, uma mãe, duas crianças e uma avó. Só faltava o gato. Depois de dez minutos de muitas dúvidas e discussão decidimos regressar a casa e abandonar o projeto de deixar as crianças e a avó na casa de praia. Dois dias depois viria a ser decretado o estado de emergência em Portugal.
Durante a viagem, a minha mente já ia em modo de emergência e eu não conseguia parar de pensar, em tempo de crise não separes a família… em tempo de crise não separes a família… em tempo de crise não separes a família... Era uma voz bastante cinematográfica. Talvez uma reminiscência da memória colectiva de quando os meus irmãos e pais ficaram separados por causa da guerra no Ultramar. Eu não era vivo. Vítima da minha educação de classe média alta, eu nunca tinha vivido uma crise.
Manter a sanidade
As últimas duas semanas parecem ter sido dois meses, ou talvez dois anos. Nunca estive tão parado e ao mesmo tempo tão agitado. Recorda-me quando na ilha do Príncipe, durante uma missão de voluntariado, fiquei de cama pensando que era malária, mas afinal era apenas cansaço. É a urgência de querer resolver algo que virou a nossa vida de pernas para o ar, e que perante a qual sou completamente impotente. É a urgência de não me sentir impotente.
Ao longo destes dias há várias coisas que me têm ajudado a manter a sanidade. Uma muito importante foi termos criado uma nova estrutura na rotina diária familiar. Esta rotina foi sendo iterada e negociada com as crianças e a avó ao longo dos primeiros dias até chegarmos a um acordo. Agora seguimo-la como se tivesse sido sempre assim.
Outra coisa importante foi ter decidido ter períodos, antes de começar a trabalhar, durante o almoço e depois de parar de trabalhar, em que estou desligado da voracidade das notícias e das mensagens. É um vórtice que me suga com a necessidade de saber quais são os números de hoje, se estamos pior ou melhor que Espanha, se já há cura, se há novas medidas, mas também se há alguma nova piada, ou alguma tragédia, ou se alguém se lembrou de mim. Em vez disso tento estar presente, em família ou tento ligar-me ao House Party a ver se partilho o momento com alguém de quem gosto.
Espantar os males
Talvez aquilo que fiz que mais me surpreendeu foi ter voltado a pegar na guitarra para cantar depois do jantar. Eu nunca fui um grande cantor. Na TUIST quando não estava a tocar pandeireta, estava na segunda fila a levar cotoveladas do Igor para não desafinar. E talvez por isso nunca tenha aproveitado muito a possibilidade que cantar traz para expressar a emoção.
Naquele dia em que me apetecia desistir e ficar na cama, algo me conduziu até à guitarra e dei por mim a cantar o “House of the Rising Sun”, e não o fiz baixinho com medo de incomodar os vizinhos, cantei a viva voz como quem queria espantar os males que me atormentavam. De repente tinha nas mãos a possibilidade de expressar as emoções que andavam a vaguear pelo corpo. As lágrimas que sustive quando em quatro casas diferentes a família se juntou para jogar um quiz criado pela minha filha. Os gritos que não dei quando em casa me zanguei com os meus filhos porque não largavam os telemóveis. A comoção que senti quando a empresa se juntou toda por video para cantar os parabéns ao meu irmão.
Desde essa noite que tenho cantado regularmente e o resto da família se tem juntado. Até já fizemos um vídeo de mim na guitarra e da Carla no ukulele a cantar o “Are you sleeping Brother John”. Para quem nos conhece pode imaginar o magnífico concerto que demos.
Este isolamento social é um mundo estranho e incerto, onde as emoções abundam e a ansiedade prospera. Tem sido um tempo de rápida aprendizagem e constante adaptação. Sinto-me confuso, cansado e angustiado, mas também me sinto muito grato pelo carinho e pela generosidade que tem brotado entre as pessoas. Anseio pelo dia em que nos vamos poder voltar a encontrar e a abraçar. Até lá cuidem de vocês, de quem vos é próximo e de quem é distante, mas está a ajudar a salvar vidas. #estamosjuntos
A fotografia que acompanha este artigo foi tirada pela fotógrafa Austėja Liu na ilha do Pico em janeiro deste ano quando o mundo ainda era vasto e o vento não parava de me atacar os caracóis.
Rodrigo, acho que todos sentimos um pouco o que descreveu. Eu escrevo de Madrid, onde após muito pensar resolvi ficar, com marido e filhos, a incerteza de não saber se fiz o certo ou o errado todos os días me visita, falo diariamente com os meus pais, mas não os posso ir mimar (com a devida distância). Todos os dias penso que se lhes acontecer alguma coisa não poderei estar perto pela primeira vez na minha vida. Que Deus nos proteja e nos dê forças para tudo o que ainda está para vir. Um beijinho e força para estes novos días de encontros e desencontros com o nosso novo Eu.
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Querida Vanda. Obrigado pela partilha. É realmente difícil estar nesta incerteza diária. Que tudo corra bem e que te reencontres com as tuas pessoas queridas muito em breve. Abraço
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Caríssima Vanda Charrua, Que bom falar em Deus, tb me parece importante daqui sugerir que leia no jornal Público de domingo passado (29/03/2020), “Nascer de novo” de Frei Bento Domingues. Nesse artigo destaquei por várias razões que agora demorava a explicar: “(…) Prefiro, no seu aparente exagero, o que Dostoievski escreveu em Os Irmãos Karamazov: Todos somos culpados de tudo, culpados por todos, diante de todos e eu mais do que os outros.'”
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Meu Deus!!! Por onde começar meu caro Rodrigo? Talvez por relevar a tua passagem: “Talvez uma reminiscência da memória colectiva de quando os meus irmãos e pais ficaram separados por causa da guerra no Ultramar. Eu não era vivo. Vítima da minha educação de classe média alta, eu nunca tinha vivido uma crise.” Mas antes de valorizar a tua maiúscula “Ultramar”, que hoje não faço, digo-te que ao terminar a leitura/estudo deste complexo, “Anseio pelo dia em que nos voltaremos a abraçar”, fui a “Tornar-me Pai”, retive da dedicatória que continuas a aprender “o que é ser Família” e do índice destaquei para ler de imediato, “Experimentar fazer diferente” e “O rio não para de fluir”. Que boa escolha esta, nada saliento das pp 75/76/77/78, estuda todas, integra-as nos teus interiores, faz ajustes, atualiza. Curiosamente na outra escolha tenho muitas notas e sublinhados, do conjunto dessa interligação, saliento que nesta crise , nesta Guerra contra a covid-19, o meu caro Rodrigo tem mesmo de continuar a “aprender a ser pessoa” tendo como certo que o ser humano vai ganhar a Guerra, mas dela vão mesmo resultar mudanças profundas. Nesse outro mundo algumas das pessoas que conheço, com o seu elevado potencial em competências, vivências e apetências de aprendizagens a todos os níveis, entre as quais se destaca o Rodrigo vão vencer. Portanto força, com aprendizagem e adaptação. meu caro Rodrigo. Até logo.
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Obrigado pelas tuas palavras e sempre cuidada análise. Um grande abraço Pena
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Adoro-te.
Tens sido difícil para todos nós.
Estar em casa sem brincar com os amigos.
Sem estar ao ar livre.
É difícil superar isto.
Todos temos de fazer a nossa parte.
Sozinhos não conseguimos.
Mas juntos talvez.
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Eu também te adoro querida filha 🙂
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Querido Rodrigo,
Estamos juntos!
Alguns de nós, mais do que nunca, porque o isolamento também tem destas coisas boas. Aproxima as pessoas… as que estavam longe por falta de tempo para se falarem, as que estavam longe na memória, as que estavam longe de si mesmas.
Que bom foi ter estado contigo antes desta loucura. Da próxima vez, dou-te um abraço, sem resistência 🙂
Um grande beijinho e força, para ti e para a tua família.
Alexandra Teixeira
PS. Gostei de saber que sempre arranjaste um gato 🙂
PS2. Se quiseres aprender a tocar guitarra, aproveita estas aulas grátis da Fender Play 😉
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Quero esse abraço sem resistência 🙂
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