Entre escritas e reescritas

Entre escritas e reescritas do romance que está a ser moído neste cérebro-coração-barriga-e-dedos, surgiram vários textos pseudo-poéticos. São pensamentos prosaicos sobre os tempos modernos que andamos a viver. Para todos os que gostam de me ler, aqui têm cinco textos diferentes do habitual. São como flores do nosso cato do luar – floresceram quando menos eu esperava. Espero que gostem.


Quero entrar

Gostava que me levasses ao circo.
Mas não à tenda redonda, com riscas de muitas cores, armada no cimo da colina.
Não quero que compres bilhetes para a matiné, nem para a sessão da noite.
Não me atrai o espetáculo e desconfio das palavras grandiosas.
Não quero que gastes dinheiro. Não quero que compres nada.
Não quero ir ao circo da cidade. Quero entrar na tua tenda. 

Essa que escondeste atrás de uma muralha, escondida atrás de um fosso, perdido no meio de uma floresta.
Quero conhecer o lugar dentro de ti, onde habitam as tuas personagens misteriosas: 
as crianças irrequietas, os jovens desiludidos, as mulheres deslumbrantes e as figuras macabras.
Quero amparar os adultos inquietos com medo de cair e de deixar cair. 
Quero ser amparada.
Não sei como convencer o homem da bilheteira de que é seguro deixar-me entrar.
Ele olha-me desde atrás da vitrina. Diz que já não há bilhetes, que vendeu o último faz anos.
Eu tento explicar que te conheço, que vivemos juntos, mas ele é uma velha raposa: sabe que minto.

Ontem cruzámo-nos no corredor. Estavas mesmo à minha frente, mas não te vi.
Disseste que o esquentador estava avariado, mas não senti o teu calor.
Passaste por mim e o teu ombro roçou no meu. As luzes não se acenderam, a cafeteira não apitou, o alarme não soou.
A porta está trancada, as janelas estão fechadas e da chaminé já não sai fumo.
Se ao menos me deixasses entrar. Talvez encontrasse o interruptor.

Estou às escuras.

Talvez devesse escrever “em obras” numa tabuleta e depois pendurá-la no nosso quarto.
Tu vivias na sala e eu no quarto dos miúdos.
Eu pagava o gás, tu pagavas a internet, eu pagava a água, tu pagavas a eletricidade.
Encontrávamo-nos apenas no corredor, quando tu fosses tomar o pequeno-almoço e eu fosse tomar banho.
Talvez vá para a cama com um dos pintores — um que me leve ao circo.
Deixá-lo-ei comprar-me o bilhete e sentar-nos-emos na bancada sul.
O pintor falar-me-á das cores do tecido e fingirei um sorriso ao ouvir as palavras grandiosas.
Farei uma cara de espanto, olhos bem esbugalhados, ao ver a arte do ilusionista.
Darei um guincho contido ao sentir a adrenalina do triplo salto mortal do trapezista. 
No final baterei palmas e sentir-me-ei uma merda porque não estou contigo.

Esquece a pintura do quarto. Quero remodelar a casa toda e quero fazê-lo juntos.
Tiramos os sofás, os cortinados, as portas da cozinha, as lâmpadas e a mesinha de cabeceira.
Deitamos as paredes abaixo e trazemos a cozinha para dentro da sala.
Colocamos dois chuveiros, lado a lado.
No fim do dia encontramo-nos lá: os corpos cobertos de suor impregnado daquele pó fininho que se infiltra por todo o lado.
Puxar-te-ei para debaixo da água fria. E serei o teu esquentador.
Talvez possa finalmente chover.
Quem sabe se o homem da bilheteira, ao ver os milhares de gotículas martelarem a tenda colorida, me deixa entrar. 

Meio grama de lágrimas

Bom dia.
Quero meio grama de lágrimas para chorar.
Não quero de crocodilo, nem de conjuntivite.
Se tiver, prefiro lágrimas de saudade,
daquelas pesadas que fazem covas no chão.

Só dá para vinte? E então, acha pouco?
É porque não conhece este deserto.
Em mim, vinte lágrimas são um rio,
uma queda de água que ameaça afogar-me.

Não, não preciso de tubo de ensaio.
Sabe, não é para experimentar. É para recordar.
Injete-me diretamente na tristeza.
Faça-me sentir a água a transbordar as pálpebras.
Crie-me sulcos que vão dos olhos aos lábios.
Dê-me a provar o sabor da perda, a textura da desilusão.
Eu quero voltar a molhar as costas da minha mão.

Disse que custa um quilo de raiva?
Pago-lhe para me ficar com uma tonelada.
Não tem onde guardar?
Eu conto-lhe o meu segredo.
Finja que está tudo bem. Sorria muito. Faça tudo para que gostem de si.
Seja tranquilo. Bom menino. Acredite que é especial.
Daqui a nada vai ver, tem um armazém, 
um ralo no peito por onde lhe desaparecem as lágrimas.


Nunca mais me chamam

Coração acelerado, costas doridas, garganta apertada.
Nunca mais me chamam!
Quero distrair-me e insisto nas palavras de um livro digital.
“A ideia da morte pode ser uma experiência de despertar…”
Não estás a ajudar, Irvin.
Levanto a cabeça e procuro um sorriso.
Máscaras, só vejo máscaras.
Estou rodeado de centenas de pessoas e sinto-me tão sozinho.
Um ser humano ansioso, 
sentado numa cadeira de plástico 
à espera de uma vacina,
que nem sequer sei qual é.

Nunca mais me chamam!
Sou um recipiente numa linha de montagem emperrada.
Sente-se aqui.
Preencha este papel.
Avance para o balcão sete.
Volte a sentar-se.
Esta fila passa para a próxima secção
(na mesma ordem).
Sente-se, levante-se, levante-se, sente-se.
A enfermeira faz sinal, mas não é para mim.
Eu sou só um recipiente de um plano de vacinação inacabado.

À espera…

“Tu não saberás que não saberás.”
E se ao morrer fizer um alarido,
talvez, então, reparem em mim.
Um defeituoso previsto nas estatísticas,
mas eu não saberei…

Coração acelerado, costas mais doridas, garganta apertada.
Nunca mais me chamam!
Até que me chamam
e eu levanto-me devagar
Espero que ela seja simpática.
Talvez lhe diga que estou nervoso.
Vejo-lhe o sorriso para lá da máscara e relaxo.
Por momentos não estou sozinho.
Distraio-me com a conversa da treta mais interessante de sempre
E nem dou pela agulha a atravessar a minha pele.
Por momentos não sou apenas um recipiente.
Iludo-me.
É Pfizer! Trinta minutos no recobro.

Começar de novo

Como é começar de novo?
Sento-me, respiro fundo e deixo a frustração borbulhar.
Horas, dias, semanas, meses destruídos, consumidos no desejo de me superar.
Construir uma casa, produzir comida, encontrar diamante, enfrentar um dragão.
Renasci longe, sem saber voltar a casa.
Aqui é tudo desconhecido.
Repito, não repito?
Faço o que sei, ou experimento o que vi fazer?
O meu mundo são cubos atrás de cubos.
Sou o que conquisto ou que construo?
A minha experiência é um número reduzido a zero.
Só me resta começar de novo,
Ou então talvez possa pousar o comando, desligar o Minecraft e ir jantar com os meus amigos. 

Dom Tamboril

Dom Tamboril tinha um dom. 
Era o único capaz de nos pôr a tamborilar.
A sua música era um segredo bem guardado
que aquietava os espíritos e animava as almas.

Conheci Dom Tamboril numa expedição pelo Ártico.
Perdido na branquidão do horizonte, já nada em mim fazia sentido.
Fora era dentro, quente era frio e ontem era hoje.
Estava para desistir e deixar-me definhar quando ouvi o batuque.

Nunca fui de amores à primeira vista.
Sempre precisei de ver para lá do olhar.
Sentir-lhes a firmeza, medir-lhes a sombra, cheirar-lhes a podridão.
Mas a paranóia devia estar na casa-de-banho e dei por mim a tamborilar.

Foi como se os dedos da mão esquerda ganhassem vida.
Bailavam ao som daquela música, irrequietos, irreverentes.
Os da mão direita mantiveram-se imóveis,
esses não dançariam nem que o Cristo descesse à Terra.

Pasmei-me!
Eu que estava drogado, travado, empilhado num armazém de velhos,
dei por mim a tamborilar como um gaiato num concerto de xilofone.
O movimento foi como que uma cascata por todo o corpo
e eu recordei-me que fora era fora, quente era quente e que hoje era hoje.
Um milagre, assim o diria a minha neta entre lágrimas e gargalhadas.

Dom Tamboril era como um peixe e a Ala Norte era o seu aquário.
Visitava-nos às quintas-feiras, de nariz vermelho e gravata verde às bolinhas amarelas.
E eu que era dos mais graúdos sentia-me o mais miúdo.

Dom Tamboril tinha um dom. Era genuíno.

2 opiniões sobre “Entre escritas e reescritas

  1. Jorge

    Gostei, todos me tocaram, e me fizeram pensar.

    5 textos, 5 alegorias

    “QUERO ENTRAR” é a necessidade, que sinto, de ir ao encontro e reconquistar sempre que uma porta se fecha.

    “MEIO GRAMA DE LÁGRIMAS” alegoria há necessidade de me aceitar e de expressar os meus sentimentos, sem os recalcar para agradar aos outros. O recalcamento é a porta aberta para o acumular de raiva.

    “COMEÇAR DE NOVO” – necessidade de quebrar com as situações que viciam.

    “NUNCA MAIS ME CHAMAM” – necessidade de encontrar a humanização em todos os atos da vida

    “DOM TAMBORIL” – necessidade de encontrar durante toda a vida a criança que existe dentro de nós

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