Onde vai um, vão todos

Faltam menos de dois minutos para terminar o jogo. O número dez dos Galitos de Aveiro lança a bola da linha de triplo e encesta. Ainda por cima sofre falta que converte num lançamento livre. É o terceiro triplo seguido que a equipa adversária encesta. Ainda há momentos a nossa equipa estava a ganhar por onze pontos e agora ficámos reduzidos a uma vantagem de um. Eu faço a única coisa que me resta, algo que nunca na minha vida imaginei vir a fazer. Estou de verde, com uma bandeira na mão e grito pelo Sporting como se a minha vida dependesse disso. Eu não sou sportinguista. O que nós fazemos pelos filhos!

A equipa de basquetebol masculino sub14 do Sporting acabaria por vencer o jogo contra os Galitos de Aveiro, tal como todos os jogos da fase final do campeonato nacional. Foram três dias em Ílhavo que culminaram com a entrega da taça de campeões nacionais a um incrível grupo de miúdos, histéricos com a proeza de trazerem a taça para casa, invictos. Três dias em Ílhavo em que eu fiquei sem voz, com as costas doridas, mas com o coração cheio de orgulho pela atitude determinada e generosa com que o Leonardo lidou com o enorme stress dos jogos.

O fim-de-semana de três dias em Ílhavo foi intenso e o meu sistema nervoso foi levado ao extremo. As emoções libertaram-se das suas habituais prisões e andaram a rondar a superfície da minha pele. Dei por mim a rir e a chorar, com medo, zangado e a saltar de alegria. Dei por mim a encontrar forças onde já não as tinha e nunca parei de torcer pela equipa. Naquele caldeirão de emoções as muitas personagens que habitam dentro de mim ganharam alguma liberdade e foram-se revelando.

Surpreendi-me com um fanático a bater de mão aberta nas proteções laterais do ginásio. Era eu a gritar não só pelo Sporting, mas também para o árbitro estar mais atento, que não era falta não senhor (mesmo sabendo que, à distância a que eu estava, era impossível ver melhor do que ele). Um fanático de fita verde na cabeça e bandeira na mão. Depois de anos em pavilhões a assistir em silêncio a jogos de xadrez dos meus filhos, que bem que soube poder gritar à vontade, deixar os pulmões encherem-se e deitar cá para fora a emoção em vez de a deixar a ruminar dentro da barriga, como é meu costume.

Alegrei-me com a generosidade da nossa bancada que decidiu não só aplaudir cada cesto da equipa da Madeira contra nós, mas também gritar pelo seu clube e cumprimentá-los no final como se fossemos a sua claque. Os miúdos da Madeira jogavam sem terem os pais na bancada a aplaudi-los e o pai fanático transformou-se em pai empático. Imaginei como seria se fosse ao contrário, se fosse o meu filho a ir para longe e a não ter ninguém para o apoiar. Que bonito, se alguém pusesse de lado a competitividade e celebrasse apenas a atitude e o talento de quem joga. Os árbitros que têm uma capacidade incrível de não guardar rancor mostraram-nos o cartão branco que, como aprendi, é um reconhecimento de fair play.

Comovi-me ao ver o capitão da nossa equipa dar um abraço sentido a um jogador do Benfica que não pôde jogar o último jogo por se ter lesionado. A parte de mim que olha com esperança para a humanidade tomou-me de assalto e dei por mim com lágrimas nos olhos. Foi um pequeno gesto, mas ao mesmo tempo enorme. Um gesto que dizia: “apesar das nossas diferenças, somos iguais, e eu sei que é uma merda estar lesionado”. Esta parte de mim é romântica e idealista. Discorda de todos os que dizem “no meu tempo é que era”. Ali estava um jovem de quatorze anos com um gesto gratuito e de grande humanidade para aquele momento difícil do seu rival.

Ao chegarmos ao final da época desportiva sinto que valeram a pena todas as horas passadas em pavilhões, todas as viagens a levar e a trazer o Leonardo para os treinos. Não por terem ganho o campeonato invictos. Secretamente até gostava que tivessem perdido alguns jogos pelo caminho. Sei que a experiência teria sido mais rica. Sinto-me feliz porque aconteceu o que eu e a mãe desejávamos. Ele encontrou um desporto intenso que o desafia a explorar os seus limites físicos e mentais, mas onde não está sozinho. Faz parte de uma equipa, com a qual sua, chora e ri. Tem um novo grupo de amigos, que não são da família, nem da escola. Um bando de miúdos que está ali porque quer, porque gostam muito da mesma coisa — jogar basquetebol. E isso na adolescência é mágico.


Aprendi que não há receitas para a arte de ser Pai, mas acredito que a partilha da minha experiência pode ajudar outros pais a lidarem com os sentimentos de culpa, exaustão e raiva que facilmente se inflitram na vida familiar. Por isso escrevi o livro Tornar-me Pai.


Eu e o Ricardo Lapão, num ato de coragem e alguma loucura, decidimos gravar um podcast de sete episódios durante os quais conversamos sobre o significado da vida. É uma partilha despretensiosa, sem filtros, durante a qual abordamos temas como a morte, o prazer, a evolução e a transcendência. Tens curiosidade? Espreita aqui.

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