O ouro que se esconde nas gavetas empoeiradas

Alguma vez tiveste a certeza de que em termos de identidade e valores pessoais já não havia nada de novo para ti na vida? Uma certeza que quando posta em causa por outras pessoas utiliza o famoso argumento: Eu sou assim e pronto.

Acho que a primeira vez que vivi essa crença tinha dezassete anos e estava a terminar os meus estudos no Colégio Militar. Recordo particularmente o meu último dia. Parecia que o meu mundo estava a desabar. Naquelas últimas horas fui atingido por uma sensação de vazio. Tinham sido oito anos a dormir debaixo do mesmo teto com os melhores amigos que eu alguma vez poderia encontrar. Com eles tinha enfrentado a intempérie e disfrutado da bonança. Nessa última tarde, sozinho no meu canto, estava tão angustiado que pus a tocar a música “Betrayal & Desolation” do filme Braveheart. Queria deitar tudo cá para fora e precisava de ajuda. Esperava-me o mundo-lá-fora e eu tinha tantos receios que me agarrei a uma certeza, a minha identidade. Assim, deixei o Colégio Militar com a ingénua arrogância dos meus dezassete anos, de queixo erguido e escudado pelos meus valores, e entrei no Instituto Superior Técnico pronto para mostrar ao mundo de que matéria era feito um menino da Luz.

O mundo acolheu a minha arrogância com a meiguice de um velho sábio e baralhou-me até eu compreender que o ouro se esconde entre a poeira, nas gavetas da alma que tenho medo em abrir. Hoje gostava de partilhar contigo o que tenho feito para abrir essas gavetas e encontrar o ouro.

As crises de identidade

Às vezes abrimos uma destas gavetas, durante uma crise de identidade. A mais popular será talvez a crise da meia-idade, quando por volta dos quarenta anos, segundo Erik Erikson surge a questão existencial: Consigo fazer com que a minha vida conte?

Provavelmente já sentiste que estavas a atravessar uma “crise de identidade” ou, se quiseres um termo menos dramático, uma “reformulação da tua identidade”. James E. Marcia, um outro psicólogo do desenvolvimento, investigou as transições da identidade ao longo da vida. Segundo ele, é expectavel que a tua identidade atravesse uma reformulação de pelo menos três vezes após a adolescência. Se correr bem, serão muitas mais, diria eu.

Quando eras adolescente o teu desafio foi conciliar “a pessoa que eras” e a “pessoa que a sociedade esperava que fosses”. Se tudo tiver corrido bem, terás explorado várias gavetas e efetuado alguns compromissos. Desse processo terá surgido uma identidade sólida, com uma direção para a vida. Se tiver corrido muito bem, terás mantido a possibilidade de vires a explorar outras gavetas que ficaram fechadas ou pouco remexidas.

Agora que és uma pessoa adulta, para acontecer uma transição de identidade terás de desconstruir a estrutura atual para encontrar uma nova estrutura, que possa incluir as tuas novas experiências. Isto vai acontecer, sem teres consciência, quando entrares num novo estágio de desenvolvimento psicossocial, ou, talvez, quando enfrentares eventos de vida que te desiquilibrem. Poderá ser a morte de alguém próximo, a perda do emprego, ou uma promoção. Poderá ser ires viver para outro país, como me aconteceu quando fui fazer Erasmus para Bolonha.

Cada transição implica um abanar da alma, o que vai levar algumas gavetas fechadas, ou perras, a abrirem-se. É uma ótima oportunidade para espreitares lá para dentro. Assim, a tua estrutura de identidade poderá evoluir, tornando-se mais rica, mais profunda e mais inclusiva. Aos poucos, sem te aperceberes, vais-te tornando cada vez mais em quem realmente és.

Lembro-me de ter vinte e poucos anos e achar que só se me acontecesse uma tragédia é que eu seria capaz de descobrir qual era a minha missão de vida. Sentia-me como o Tim Minchin se descreveu na sua música genial “Rock ‘n’ Roll Nerd”: a victim of his upper middle class upbringing. Hoje já não penso assim. Nem sequer me lembrava de em tempos ter pensado assim, até ter escrito este artigo. Felizmente, não tive direito a nenhuma tragédia. Acho que, em vez de esperar por uma transição de identidade, parti numa busca consciente da identidade. Um processo que Carl Jung descreveria como individuação.

Individuação

Ao contrário de muitos teóricos do seu tempo, que colocavam o enfâse do desenvolvimento da pessoa nas primeiras fases de vida, Jung via o desenvolvimento como um processo contínuo. Jung dizia que a experiência total de unidade, através da emergência do self nas estruturas psíquicas e na consciência, demora uma vida inteira. Por outras palavras, seres quem és, na tua totalidade, é um projeto de vida.

A primeira fase deste grande projeto é o teu desenvolvimento até que sejas capaz de ser independente, de te adaptares às circunstâncias e de sustentares a responsabilidade na educação de outros, nomeadamente crianças. Esta primeira fase é ambiciosa e para muitos aparentemente suficiente, mas existe uma segunda fase do teu projeto de vida. E esta é muito mais interessante.

A segunda fase tem como objetivo atingir a unidade psicológica, integrando todo o material psicológico que ficou nas gavetas durante a primeira fase. Esse material ficou lá por uma razão funcional. Tu precisavas de segurança para poderes ser independente. Mas aquilo que foi válido em tempos, não tem de ser válido para sempre. Há ouro nessas gavetas, escondido no meio do pó. E talvez tenha chegado o momento de resgatar esse ouro. A grande pergunta é: O que é que tu tens feito no teu processo de individuação, sem ser esperar por uma crise?

O ouro de 24 quilates

Eu tenho respondido a esta pergunta através de uma busca de experiências que me desafiam a abrir gavetas que eu sozinho sei que não vou abrir por preguiça. Tenho dois requisitos para essas experiências:

– Têm de nascer de um espaço de Amor, pois o amor é o antídoto da preguiça;
– Têm de respeitar o movimento da minha alma, pois tal como David Boadella disse, a alma precisa de movimentos lentos. E eu sempre fui lento.

Deixa-me dar-te dois exemplos de processos que realizei na minha vida e falar-te do ouro de 24 quilates, que encontrei por causa deles.

Um dos grandes desafios da minha vida é o reencontro com a minha espontaneidade, aquela que eu guardei na gaveta enquanto resolvia o desafio da identidade durante a adolescência. Descobrir o meu clown foi o maior passo que dei até hoje nesse reencontro.

O meu clown permitiu-me entrar em contacto com quem já eu era sem estar contido. No espaço seguro criado por grupos dirigidos pelo José Sebastião, que me acompanhou ao longo das diferentes oficinas que fiz, foi-me possível experimentar a expressão dos meus pensamentos, das minhas emoções, por mais absurdas ou intensas que fossem. Em vez de ficar diminuído por medo do ridículo, foi-me possível abraçá-lo, rir-me e fazer rir com ele. Hoje, compreendo o valor terapêutico que esta técnica tem. Hoje, sinto-me mais espontâneo, mais capaz de ser eu, mesmo quando o eu não é assim tão bonzinho.

Um dia ouvi falar de um processo chamado The Path of Love. Fiquei imediatamente curioso. Se havia um caminho do Amor, eu queria percorrê-lo! Andei, durante umas semanas, a ruminar sobre a ideia. Investiguei um pouco sobre o conteúdo e sobre os seus criadores, mas sem grande compromisso. Até que um dia, um grande amigo disse-me que já se tinha inscrito. A possibilidade de eu ir tornou-se real e eu senti… medo. Com o medo surgiram os habituais argumentos: “vou estar dez dias afastado da minha família”, “é muito dinheiro”, “não tenho tempo”, “é muito longe”. Eram os argumentos da preguiça.

Enquanto decorria este conflito interno, em homenagem a um grande amigo que morreu, fui fazer a meditação Samasati. Esta meditação é uma oportunidade de praticar o processo de morrer de forma consciente. Como se fosse um ensaio para o fim da minha vida. No final da meditação tinha-se tornado muito claro para mim que o medo que eu tinha de ir fazer o Path of Love era um forte indicador de que havia ouro por encontrar. E então cheio de coragem inscrevi-me.

Foi a experiência mais intensa que tive até hoje. Foi tão difícil quanto maravilhosa. No final encontrei numa das minhas gavetas o amor incondicional por mim próprio, que há tanto procurava.

Se realmente quiseres encontrar a tua unidade psicológica, terás de sair do sofá, desligar a televisão e experimentar. Acredita em mim. No final da vida, o ouro que tens perdido nas gavetas da tua alma é muito mais valioso do que qualquer ouro que possas guardar nas gavetas dos cofres do teu banco.

Se quiseres experimentar a técnica de Clown, inscreve-te na próxima edição da nossa oficina, começa já quinta-feira dia 14 de janeiro.

4 opiniões sobre “O ouro que se esconde nas gavetas empoeiradas

  1. Olá Rodrigo,
    Já passei há muito pela fase de que já sabia tudo e já nada tinha a aprender. Creio que todos passam por aí: o tempo das certezas absolutas. Mas isso passa e lentamente fui-me apercebendo de que, afinal, sabia pouco e tinha muito que aprender.
    Eu sou dos que acreditam que o mundo não é a preto e branco. Há uma multitude de saberes e comportamentos que impedem que haja sentenças definitivas do estilo: eu sou assim e pronto! Na verdade em certos aspectos somos algo graníticos, não mudando como gostaríamos. Um sujeito precipitado, por muito que lute, tem sempre momentos em que se precipita novamente. E é assim em muitos comportamentos, mas algo conseguimos sempre melhorar. É essa aprendizagem contínua que devemos sempre perseguir e sorrir quando os “vícios” antigos regressam ou afloram.
    Sobre a formação da personalidade nos primeiros anos de vida, sim, ponho a ênfase nisso. Nós já não surgimos com “tábua rasa” e as primeiras emoções marcam-nos indelevelmente.
    Por hoje fico por aqui.
    Abraço,
    Jorge Golias

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    1. Olá Jorge.
      Às vezes olho com saudades para os meus tempos das certezas absolutas. Era um tempo mais épico! Hoje delicio-me com a doçura do redondo da vida. Penso que terei a oportunidade de revisitar essa fase, através do crescimento dos meus filhos. Espero ter a capacidade de os deixar disfrutar desse tempo, sem lhes impor a minha visão atual como sendo a certeza certa. Obrigado pela partilha. Um abraço.

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