A peça Ricardo III no Teatro Nacional D.Maria II ficará para sempre na minha memória, tanto pela força arrebatadora das imagens cénicas, como pela agressão à qual sujeitei o meu corpo.
Comprámos os bilhetes com antecedência. Depois de consultarmos os especialistas, escolhemos os lugares centrais da primeira fila do primeiro balcão. Assim que a assistente de sala me indicou o lugar onde me ia sentar, eu percebi que não ia ser um espetáculo fácil. Senti mesmo tudo o que se ia passar: a inquietação de não ter forma de esticar as pernas, o desconforto na lombar, as sessões de osteopatia para voltar a pôr tudo no sítio. Sentei-me contrariado, sem ninguém me obrigar, exceto eu próprio. O espaço para as pernas era mínimo e como era a primeira fila do balcão não havia espaço para colocar os pés debaixo do banco da frente. A lombar desesperada gritou que eu era louco, enquanto a ciática, com um risinho maléfico, afiava as suas facas. Naquele momento eu podia ter-me levantado, recusado a sentar naquele lugar, e podia ter pedido à assistente que me arranjasse um lugar onde eu não ficasse tão desconfortável. Ou então podia ter-me ido embora. Mas não. Se quando tinha quinze anos estive numa formatura, sem me mexer, durante duas horas debaixo de chuva torrencial à espera do primeiro-ministro, não era uma cadeira de veludo vermelha que me ia derrotar.
O espetáculo durou duas horas e meia. Ao mesmo tempo que Ricardo punha em prática os seus pérfidos esquemas para conduzir os seus opositores à morte, eu praticava esquemas mentais para justificar o sofrimento pelo qual o meu corpo estava a passar. No final, enquanto Ricardo gritava “Um cavalo! O meu reino por um cavalo!”, o meu corpo gritava ”Espaço! Tudo por um pouco de espaço!”
Passei o mês seguinte cheio de dores. Acabei por ter de visitar o meu osteopata duas vezes para que conseguisse começar a recuperar da tortura a que me tinha sujeitado. Só me apetecia gritar “Sou mesmo estúpido!” Não gritei, mas disse-o várias vezes. Claro que reduzir este evento a estupidez seria desperdiçar a oportunidade de compreender porque é que ele aconteceu e, talvez, conseguir evitar que volte a acontecer uma situação semelhante. O que é que se passou naquele momento em que eu ignorei o barulho do afiar das facas da ciática? Já te aconteceu ignorares todos os sinais que o teu corpo te está a enviar? Uma semana depois deste incidente, durante uma aula de Biossíntese, tive a oportunidade de refletir sobre os meus limites. Quero partilhar contigo as conclusões a que cheguei.
Uma reação exacerbada de proteção da vida
Comecemos por imaginar o que é que me poderia ter convencido a sofrer, durante duas horas e meia, uma tortura que me deixaria dores no corpo durante um mês.
- Uma avaliação da qual dependesse o meu futuro profissional ou pessoal. O que não era o caso, ninguém na audiência me conhecia. Eu era um ilustre desconhecido.
- Uma arma apontada à cabeça. A única pessoa ao meu lado era a Carla, que me perguntou várias vezes se eu estava bem.
- Uma recompensa avultada de dinheiro. Foi ao contrário, acabou por se transformar no bilhete de teatro mais caro da minha vida.
A verdade é que a única consequência de eu me ter levantado e ido embora teria sido não assistir ao espetáculo. Eu ficaria com pena pois conhecia um dos atores, mas não era nenhum drama – eu nem sequer sabia que o Ricardo III era uma peça de Shakespeare.
Aquele momento que tinha sido planeado como um momento de prazer, transformou-se num momento de sofrimento. Afinal, se não havia nenhuma razão lógica, porque é que isto aconteceu?
De uma forma muito simples, porque tive vergonha.
Comigo a vergonha é uma ditadora sofisticada e dissimulada, que quando toma o poder, é soberana. Também é uma velha amiga que anda há muito tempo de mão dada com o “bom aluno bonzinho”. Por isso, conheço bem quando ela chega. Sei como ela me gera uma ansiedade que me desregula. É como se o mundo externo fizesse pressão sobre mim com os seus julgamentos e ideais e eu tivesse medo de me magoar. Então eu contrario e torno-me denso, como se a espessura das minhas células aumentasse e assim eu fosse capaz de resistir à agressão. Preso nesta tensão entre o dentro e fora, não sou capaz de estar em contacto comigo e, numa reação exacerbada de proteção da vida, a vergonha acaba por matar o prazer.
Uma emoção tão velha quanto a minha memória.
Quando faço algo errado sinto-me culpado. Perante esse sentimento, eu posso fazer alguma coisa, pedir desculpa, corrigir, compensar. A vergonha é diferente, surge de uma sensação de ser errado. Não há nada a fazer. Essa sensação é acompanhada de uma dor enorme, pois atinge a minha identidade, a minha noção de quem sou. Durante muito tempo evitei a todo o custo sentir-me envergonhado, tal como continuo a evitar voltar a queimar-me.
A vergonha teve um papel funcional à medida que fui crescendo. Foi ela que me permitiu integrar os grupos aos quais fui pertencendo. Foi ela que me ajudou a desenvolver recursos para que eu me sentisse reconhecido e validado.
Lembro-me de estar na segunda classe e de ler em voz alta uma composição sobre o meu fim-de-semana. Do alto dos meus sete anos escrevi algo parecido com:
“No Sábado acordei e estava a dar a TV Rural. Depois vi os desenhos-animados. Depois almocei. Depois fui ao Inatel. Depois joguei mini-golfe. Depois fui para casa. Depois joguei spectrum. Depois jantei. Depois fui dormir.”
Como podem ver, naquela altura, eu apostava tudo no advérbio “depois” como elemento de ligação. A reação da minha professora foi tão agressiva e humilhante que eu senti uma profunda vergonha perante a minha turma. Este evento teve a consequência funcional de me incentivar a escrever mais e melhor. Poderás dizer que este blog é em parte resultado dessa humilhação. Talvez devesse agradecer à minha professora. Ou talvez não. Esta consequência só foi funcional até um certo ponto, depois tornou-se amarga, insuportável e eu deixei de escrever. Estava zangado com a minha motivação para escrever. Não era por prazer, era para agradar, como se houvesse algo de errado comigo e eu tivesse de provar alguma coisa.
Como lidar com a vergonha
A minha ideação do que é o contacto com a vergonha é mais dramática do que a realidade. Então eu crio um território proibido, estabeleço certos limites, por achar que não tenho recursos para estar nesse contacto.
Até há pouco tempo eu achava que fazer nudismo numa praia era um território completamente proibido para mim. Só de me imaginar nu no meio de desconhecidos enchia-me de vergonha. Falar desse tema era sempre motivo de piadas, a melhor forma de desanuviar a tensão desses limites impostos. Então, no verão passado, fiz nudismo e foi surpreendentemente tranquilo. Em vez da vergonha que eu temia, senti imensa liberdade, não só por estar nu de roupa, mas também por me ter despido de limites.
Este acontecimento foi possível porque tenho aprendido a respirar a emoção, não enquanto boa ou má, mas enquanto experiência. Estar nessa respiração, sem julgamento, abre a porta a uma nova sabedoria. Consigo reconhecer de onde vem a emoção, a sua intensidade, a sua idade e a sua função adaptativa. Ganho consciência do que é meu. Assim posso distanciar-me do facto que a provocou e regular-me de forma mais saudável.
Este caminho não faz com que eu deixe de sentir vergonha. O dia em que eu deixar de sentir emoções desagradáveis será o dia em que deixarei de ser humano. Este caminho transforma a qualidade de minha relação com a vergonha. Em vez de me subjugar ao medo da sua tirania sofisticada e dissimulada, posso acolhê-la com compaixão pela sua insegurança e necessidade de controlo. Esse abraçar permite-me vê-la como ela realmente é: uma criança insegura que tem medo de ser gozada por só saber utilizar o advérbio “depois” para ligar os eventos da sua vida.
Depois de vários anos zangado com a escrita, voltámos a fazer as pazes. Claro que a necessidade de que as pessoas gostem do que eu escrevo continua cá, mas agora isso é só mais uma coisa que aqui está e já não tenho vergonha dela. Agora já posso começar parágrafos, como este, com “depois”.
Rodrigo, é tão, mas tão bom ler-te! Gosto da ideia de aprender a respirar a emoção… Eu às vezes esqueço-me de respirar. Também ignoro emoções que considera “negativas” e esqueço-me que isso é ser-se humano. Passo a vida a comportar-me como se fosse um super herói. Só sentir o bom…
Obrigada por me levares a viajar na minha história e a aprender lentamente a abraçar estes sentimentos.
*um beijinho*
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Olá Lúcia.
Não é fácil respirar as emoções ditas negativas. Implica sentirmos e aceitarmos o desconforto que nos causam. Tenho descoberto que é um processo lento, mas saboroso. Tem me permitido estar menos tenso e ser mais autêntico. Não há super-heróis, nem gurus. Existem pessoas com todas as possibilidades dentro delas. Obrigado por partilhares.
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Meu caro Rodrigo, excelente análise e melhor resposta. Na verdade apetece-me repetir, “Este caminho não faz com que eu deixe de sentir vergonha. O dia em que eu deixar de sentir emoções desagradáveis será o dia em que deixarei de ser humano. (…) Em vez de me subjugar ao medo da sua tirania sofisticada e dissimulada, posso acolhê-la com compaixão pela sua insegurança e necessidade de controlo. Esse abraçar permite-me vê-la como ela realmente é: uma criança insegura que tem medo de ser gozada por só saber utilizar o advérbio “depois” para ligar os eventos da sua vida.”
Um abraço da maior consideração,
António Pena.
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Obrigado António. Abraço.
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Querido Rodrigo, o que senti a ler o texto dir—te—ei pessoalmente porque tenho esse enorme privilégio de o poder fazer mas agora deixa me só dizer te como seria tão bom a TV Rural não ser só uma memória mas continuar a fazer parte do nosso presente. Beijos grandes
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🙂
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Mais um excelente texto! Parabens! A ansiedade e o stress provocada pela vergonha reduz o prazer… nao podia estar mais de acordo.
Preso nesta tensão entre o dentro e fora, não sou capaz de estar em contacto comigo e, numa reação exacerbada de proteção da vida, a vergonha acaba por matar o prazer.
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Esta tensão é tramada.
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Gostei muito do teu texto Rodrigo. Continua a escrever pois o teu jeito sensível de observar a vida acrescenta muito a quem te lê. Revi-me muito nas tuas frases acerca do acolher a vergonha. Tem sido uma aprendizagem. Sinto exactamente como dizes: por detrás daquela sensação que parece que nos vai destruir está uma criança assustada que um dia não soube lidar com o que lhe estava a acontecer.
Abraço
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Abraço Filipe
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Como sempre gostei das suas reflecções. Sim a vergonha limita nos muito, e nem com passar dos anos passa. Mas acho que se confunde muito com um o respeito humano .Temos muito respeito humano pelo que os outros vão pensar de nos. O que o meu vizinho vai pensar se eu levantar do meu lugar no teatro? O que o parceiro vai pensar de eu estar nu na praia? No fundo vira sempre em volta do meu pobre “EU”. E de como eu me apresento ,reajo e comporto em relação aos outros. A nossa grande insegurança gera vergonha, Mas a vergonha tb ajuda nos a moldar as nossas atitudes, afinal não queremos se um pessoa ” sem vergonha”…????? Obrigada por partilhar
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Olá Mikolt.
A vergonha tem o seu papel funcional, não a podemos é deixar ditar a nossa vida. É só mais uma informação que temos para gerir. Obrigado pelo comentário.
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Excelente texto. Gosto muito de o ler, a facilidade com que escreve sobre emoções, sentimentos e acontecimentos da sua vida pelos quais todos passamos mas por vezes menos conscientemente.
Conheço bem o sentimento. Fui uma criança tímida, caladinha e já jovem adulta continuava a corar! O receio de falhar, o medo da exposição, da humilhação, muitas vezes camuflei-o com uma postura de arrogância.
A vida levou-me à India e ao yoga e fui confrontada com situações de grande exposição, palco, representar, falar de mim, falar de sentimentos…foi uma terapia de choque!
Continuo a ter inúmeras inseguranças, vergonhas, continuo muitas vezes a sentir-me pequeninha e assustada mas em certas situações fico perplexa com o meu à vontade! E de caladinha passei a tagarela, o que por vezes me assusta.
Percebi que não tenho de ter receio de me expor, que não tenho de ser perfeita, que tenho apenas de ser eu mesma e que todos somos feitos da mesma matéria e em última análise todos desejamos a mesma coisa, ser felizes.
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Olá Isabel.
Quando percebi que todos queremos ser felizes, o medo da exposição tornou-se um pouco ridículo. É que quem está ali a ver-nos, não é diferente de nós. Não quer dizer que esse medo tenha desaparecido totalmente, mas ajudou-me a enfrentá-lo. Obrigado por teres partilhado a tua experiência. Faz toda a diferença.
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A ida para a primária foi a coisa mais incrível que me aconteceu naquela fase de vida. Recordo-me com uma enorme ternura do dia em que, pela primeira vez, consegui juntar letras e construir a palavra. Voltei-me a sentir assim, tão fascinada com tal imensidão, no dia em que fui mãe. Ainda guardo a minha avaliação da 1ª classe: atenta, interessada, companheira, excelente aluna…. com uma letra terrível. Chorei até mais não perante tal humilhação. Passei três meses de férias a fazer cópias, obstinada em melhorar a minha caligrafia. Um ano depois, ganhava o prémio da aluna da escola com a letra mais bonita. Esta é uma pequena amostra da minha vergonha, da qual tenho memórias que remontam aos 4 anos, no dia em que sai de casa sem cuecas, pois a minha mãe tinha-se esquecido de as vestir. As minhas vergonhas são tantas e algumas tão feias e cruéis, e tão reveladoras acerca de mim mesma, que acho que não cabem neste blog. Esta tem sido a minha grande luta de vida. Sobreviver às minhas feias vergonhas. Estou a consegui-lo e faço conquistas diárias. Se assim não fosse, estaria aqui a fazer toda uma catarse. Que, felizmente, já não sinto assim tão necessária! 🙂
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Aqueles primeiros anos de escola têm um impacto enorme na nossa vida. É a primeira vez em que somos avaliados perante um grupo e queremos tanto ser validados. É muito bom, conseguirmos reconhecer isso mais tarde. Obrigado pela partilha tão honesta.
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Será que só temos vergonha porque existe uma terceira entidade? A turma, os outros….mas no teatro essa entidade era o escuro, ninguém te reconhecia no escuro. Será que se nos recolhermos e afastarmos do mundo temos vergonha?. Os eremitas teriam vergonha?. Não é uma provocação mas tão só uma questão que eu ponho a quem tão bem descreve a vergonha emoção? ou a vergonha sentimento? ou a vergonha componente do verbo envergonhar-se (quem se envergonha envergonha-se de alguma coisa. o quê? o que fez ou o que os terceiros apreenderam?
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Olá João.
Vou tentar responder às tuas questões, bastante interessantes.
As entidades externas existem de forma simbólica dentro de mim. Por isso basto eu, para me sentir envergonhado.
A vergonha que eu descrevo é uma emoção recheada de sensações antigas. Eu não preciso de fazer nada no presente para sentir vergonha. Basta-me a recordação impressa nas minhas células de como foi quando não me senti validado. O medo de voltar a sofrer impede-me fazer o que for que possa trazer de volta essa sensação de não ser validado. Por isso é que respirar e permitir-me voltar a experimentar, ajuda a renovar essas recordações por outras mais saudáveis.
Afinal a emoção não é tão intolerável quanto parecia à criança que eu fui.
Obrigado pela partilha e pelas questões.
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Obrigado, Rodrigo mais uma vez por partilhares, neste caso particular a tua “vergonha”que no fundo é a de todo o ser humano, imagino.
Também eu te posso dizer que já tive que ultrapassar imensas vergonhas ao longo da vida e provavelmente ainda terei que ultrapassar muitíssimas mais enquanto por cá andar, mas aquilo que mais me alegra é que nem tudo fica pior com o passar dos anos, algumas coisas melhoram bastante e assim tem acontecido com a minha “vergonha”, cada vez a sinto menos e embora continue a ter algumas inseguranças, cada vez sinto menos vergonha de me expor, naquilo que sou, penso e sinto.
Continua, não desistas nessa conquista de lutar contra a tua vergonha, pois assim encontrarás o teu verdadeiro “eu”.
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Devagar, mas sem desistir. É esse o meu caminho. Obrigado.
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