Quando eu tinha treze anos, durante a confissão, um padre perguntou-me se eu já me tinha masturbado. Bastante desconcertado, acabei por confessar que sim. Eu tinha treze anos, claro que já me tinha masturbado! Levei como penitência ter de rezar já-não-sei-quantos Pai Nosso.
Na altura, fiquei bastante revoltado e envergonhado com este episódio. Aquela pergunta tinha-me trazido uma sensação de que estava tudo errado. Eu estava errado. A Igreja estava errada. Essa sensação foi uma semente que demorou muito tempo a germinar. Todos os meus processos internos têm esta qualidade, são lentos e muito ponderados. Antes de eu me afastar definitivamente da Igreja e da religião, ainda faria o Crisma e duas procissões a Lourdes. Quando entrei na universidade, senti-me finalmente livre para cortar todos os vínculos que tinha com a religião católica. Passei-me a designar como não religioso, o que para mim era diferente de agnóstico e de ateu.
O meu lado cognitivo amou esta nova fase. As discussões sobre a religião são maravilhosas para a racionalidade argumentativa. Divertia-me a desmontar os argumentos religiosos, utilizando a minha educação católica de dezoito anos como fonte de discernimento. Os debates terminavam sempre no último reduto intransponível da Fé.
O que mais me incendiava nessas conversas era esta contradição da Igreja Católica:
“Aquele que não ama não conhece a Deus; porque Deus é amor.”, em 1 João 4:8
e ao mesmo tempo,
“Como acontece com qualquer outra desordem moral, a atividade homossexual impede a auto-realização e a felicidade porque contrária à sabedoria criadora de Deus.”, em Carta aos bispos da Igreja Católica sobre o atendimento pastoral das pessoas homossexuais
Se Deus é Amor, e a palavra católico quer dizer universal, ou seja que é inclusivo, como é possível que a Igreja exclua os homossexuais da felicidade, exclua as mulheres do sacerdócio e exclua os sacerdotes das relações sexuais.
Como podes imaginar, as discussões conseguiam ser bastante acesas. Então conheci a Candeia.
A Candeia é uma associação que anima crianças e jovens que vivem em instituições. É uma associação fundada por católicos, que lhe quiseram imprimir nos estatutos uma matriz cristã. Apesar de não ser uma organização dependente da igreja, é acompanhada por padres. Eu fui parte ativa deste grupo maravilhoso durante nove anos. Embora não seja religioso, nunca me senti excluído, pelo contrário, fui convidado a ser presidente da Candeia, função que exerci durante dois anos. No seio desta comunidade que pratica o não julgamento e a inclusão, foi me possível ter um contacto diferente com a igreja. E se tinha chegado um padre para atear a faísca da revolta, bastou outro padre para me trazer a tranquilidade da reflexão. Durante um campo de férias itinerante pelo Gerês, o capelão, um amigo que estimo muito, foi-nos desafiando a refletir sobre quem somos e o que estamos aqui a fazer. Este homem, um raro encontro entre a profundidade dos grandes pensadores e a humildade de quem faz coisas acontecer, trouxe-me de volta a possibilidade da espiritualidade.
Por esta altura já tinha lido Siddhartha do Hermann Hesse. Este livro despertou em mim uma sabedoria impossível de ignorar. Não existem iluminados para eu seguir. Não existem receitas, nem atalhos. Ninguém detém a verdade. Existem perspetivas a escutar, experiências a conhecer, sabedoria a compreender, mas o meu caminho espiritual é da minha responsabilidade e não o quero dependente de mais ninguém. Entregar esse poder de descoberta a uma igreja, a um buda ou a um guru, seria privar-me da riqueza da minha individuação.
Esta tornou-se a minha batata quente, se uma igreja não é a resposta, qual é o meu caminho espiritual? Melhor, o que é isso de espiritual? Existe um espírito? Existe uma alma? Para que fosse possível refletir sobre estas perguntas comecei por reduzir o âmbito da indefinição e retirei Deus da equação. Perante a pergunta: “Existe Deus?” A minha resposta tornou-se: “Essa pergunta não é importante. Existir ou não existir Deus, não altera a minha vida, por isso não me quero preocupar com isso.” Ou seja, a existência de Deus está fora do meu círculo de influência, por isso vou também deixá-la fora do meu círculo de preocupação.
Sem um elemento externo onde colocar a minha espiritualidade, fiquei com um problema difícil de resolver. Recentemente tenho encontrado algumas das respostas para estas questões. Pode ser que elas também tenham algum valor para ti, por isso aqui vai a minha partilha.
Uma nova definição de espiritualidade
Sempre foi difícil para mim aceitar ideias sem ter fatos evidentes. Sou parte de uma família, onde as afirmações invulgares são alvo de escrutínio e se não forem sólidas acabam facilmente desbaratadas. Assim, sempre dei muita importância à compreensão.
Para compreender o que é o espírito podemos investigar a origem da palavra. Espírito vem de spiritus, que em latim quer dizer sopro, ar, alma. Segundo o dicionário também quer dizer “coisa incognoscível que anima o ser vivo”. O que poderá ser entendido como um sopro que anima o ser vivo e não pode ser entendido pela inteligência humana.
Há um ano atrás ouvi uma outra definição: “a minha espiritualidade é a minha capacidade de estar em contacto comigo próprio”. Esta definição fez todo o sentido para mim. Nem sei bem explicar como é que eu sei que fez sentido, mas ali estava um caminho que eu podia explorar. Este caminho tinha a vantagem de estar alinhado com uma das minhas crenças, de que antes da compreensão vem a vivência. “Apenas o vivido é compreendido”, escreveu o meu curso na placa que colocámos a recordar os nossos tempos de Colégio Militar.
Ao juntar estas duas definições, fiquei com um daqueles desafios que eu gosto para a vida. A minha espiritualidade é a capacidade de estar em contacto com esta coisa incognoscível que me anima.
Um farol para a minha curiosidade
Esta definição de espiritualidade não implica nenhuma experiência transcendente, não implica acreditar num deus, nem comunicar com os mortos. Também não implica curar a tristeza, nem acalmar a raiva. Esta definição fala de contactar plenamente com o que sinto, especialmente com o que me é desconhecido e me assusta, e de ser capaz de manter esse contacto. O Jeff Foster disse-o de uma forma muito clara neste pequeno excerto de um dos seus encontros:
“So fear, anger, sadness, doubt, they don’t come to you to be healed, they come to you to be held. Held, not healed.”
O mundo da psicoterapia corporal trouxe-me esta possibilidade de contacto comigo próprio e foi uma revolução na minha vida. De repente, apercebi-me que eu também sou um corpo e que há tanto por explorar. Comecei a ter consciência das emoções e das sensações que elas me provocam. A raiva que eu reprimo, que quando foge da prisão sai louca, violenta. A tristeza que me seca com medo da sua fraqueza. O medo que me estrangula. A alegria que já me enrugou os olhos para sempre. E o nojo, esse mistério tão pouco explorado que me retorce desde os dedos das mãos aos dedos dos pés. No meio de toda esta vivência apercebi-me de uma dor no coração. Era uma dor profunda que eu não conseguia alcançar, que eu não percebia. Era um sinal que surgia sempre que eu me aproximava das minhas gavetas empoeiradas.
O coração não é só um órgão, é também um símbolo poderoso que herdei da humanidade, a sede dos sentimentos. O meu corpo estava a dizer-me que havia ali algo para mim. Não tentei curar essa dor, deixei-a ficar como um farol para a minha curiosidade e continuei a viver e a experimentar.
Uma sensação de sagrado
Neste contacto com a coisa incognoscível, começou a ganhar espaço uma sensação de bem-estar prazeroso, acompanhada de um silêncio interno suspenso. A dúvida, a raiva, a tristeza e o medo continuam a existir, mas agora também existe esta nova sensação, uma sensação de sagrado, totalmente oposta ao que senti com treze anos. A sensação de que algo errado em mim desapareceu, agora sinto um amor incondicional por tudo o que sou. Tudo. O adolescente que se masturba, o jovem que é reacionário contra a igreja, e o adulto que sente que há algo de sagrado dentro de si.
Quando comecei a escrever este artigo apercebi-me de que a dor no coração que me acompanhou durante algum tempo, desapareceu. Que bom.
Mais uma vez, Rodrigo, obrigada pela tua partilha. Também eu tal como tu e porque mais velha, já me confrontei várias vezes com essa questão. Durante alguns anos discuti amigavelmente com o padre do agrupamento, onde fui escuteira sobre o que é isto de acreditar ou não em Deus e aquilo que te posso dizer, neste lugar que ocupo há 57 anos é que depois de várias anos de introspeção é que de facto com Deus ou sem ele, me considero um ser cada vez mais espiritual. o que para mim significa, mais perto dos outros, das suas dores e das suas alegrias e sobretudo mais atenta ao papel que desempenho neste Mundo que não é nem deveria ser para ninguém, o da Indiferença.
Quase todos os dias falo com Ele, entende com isto, o que tu quiseres, uma reflexão, uma vontade de ser alguém melhor, uma necessidade de me conhece cada vez mais, o que é certo é que me deixa mais perto da minha essência e embora nem sempre me sinta sempre conectada e ainda chore muitas lágrimas de frustração, acho que a espiritualidade é isso mesmo, um Caminho que todos deveríamos percorrer em busca do melhor de nós, pois só assim poderemos ser pessoas que contribuam para um Mundo melhor.
Que alegria se todos o fizéssemos, apesar dos medos e das inseguranças.
Um abraço cheio de Luz
Fernanda
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Não é fácil estar num caminho de reflexão. É muito mais simples deixarmo-nos ficar no que já conhecemos e aos poucos enrijecermos a nossa postura, as nossas ideias e o nosso coração. Acredito que o resultado é um mundo de abundância, o que é muito mais interessante do que a escassez.
Retribuo-te um abraço cheio de luz e de amor.
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Pierre Teilhard de Chardin disse”Não somos seres humanos a viver uma experiência espiritual, somos seres espirituais a viver uma experiência humana”! Na minha adolescência sempre neguei a existência de Deus e fui contra a igreja católica porque via o meu pai ir à igreja todos os domingos e a pecar descaradamente o resto da semana. Aos 22 anos quando sofri uma lesão na coluna e o médico me disse que eu poderia nunca mais andar, comecei a pedir todas as noites a Deus para voltar a andar e Voltei a andar em perfeitas condições! Esta experiência foi o inicio da minha espiritualidade que a partir daqui daria para escrever um livro…Cada um de nós descobre a sua espiritualidade de uma forma particular e única! O seu texto está bonito Rodrigo! Foi o seu caminho, a sua experiência(e continuará a ser) da espiritualidade!
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Olá Carla.
Esse livro seria certamente um mundo de sabedoria. Não imagino como será a experiência de deixar e de voltar a andar. Obrigado pelo comentário e por acompanhares este meu caminho.
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Foi através da amiga comum Luísa Silva que o descobri. E que redescobri, pela enássima vez, que não sou, que não somos, os únicos a reflectir, a sentir, a pensar, a crescer. Porque a espiritualidade vai crescendo em nós a cada momento de reflexão, a cada momento em que sentimos haver algo mais, e algo mais forte, e maio,r e mais luminoso em nós. E que só vemos essa luz em nós porque a descobrimos nos outros que, se calhar, sempre a tiveram. Nós é que não estávamos despertyos ou dispostos a vê-la nos outros. E acabamos por perceber que afinal há cada vez mais pessoas a descobrirem, e a redescobrirem, a sua espiritualidade. Ou seja, que há uma comunidade gigantesca à nossa volta ligada a esta coisa da espiritualidade. Todos nós, todos eles, ainda receosos de se exporem.
Enfim, só queria dizer que gostei muito do seu artigo e que um dia poderemos nos encontrar e recomeçar mais um pedacinho do nosso caminho. Um abraço de energia.
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Olá João. Espero que esse encontro aconteça um dia. Obrigado por partilhares. Um abraço
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Cresci numa família de catolicismo rural. Mais temeroso do que convictamente praticante. Dos 5 aos 15 anos frequentei um colégio católico. Nos primeiros anos encontrei “conforto” no divino que ama e promete recompensar os justos. Rezei-lhe, fiz pedidos e promessas. Tudo faria em troca de algumas pequenas/grandes “justiças” que me eram devidas. E eram-no, de facto. Nunca obtive resposta. Revoltei-me, desiludi-me depois e, por fim virei as costas. De costas voltadas, mas intranquila. Não me recordo quando é que fiquei em paz comigo mesma percebendo que não era católica. Não acredito, não pratico. São muitas as vezes em que penso que tudo seria mais fácil se acreditasse em algum tipo de enquadramento. Não tenho religião. Não tenho partido político. Não tenho clube de futebol. A minha cor preferida? Dependo do dia e dos humores. É demasiada liberdade. Às vezes sinto falta de contexto. Tenho pensado muito sobre o assunto nos últimos anos e perante vários desafios. Assumi que o meu credo era o de ser um ser humano, com tudo aquilo que eu acredito que um ser humano deve ser: generoso, curioso, participativo, intrigado. Empenhado em criar e em partilhar, interessado em desfrutar. Perto de minha casa há uma igreja. Aos domingos a missa é muito concorrida. Nos primeiros anos do meu filho foram muitos os domingos em que empurrei o carrinho pela estrada pois os passeios estavam intransitáveis com os carros dos “católicos”. Um deles era o do pároco. Um dia, deixei.lhe um bilhete educado no parabrisas acerca do respeito ao próximo. De nada valeu. Ao domingo, a maioria das pessoas que vão à missa impedem a circulação segura nos passeios de crianças, idosos e dos muitos deficientes visuais que vivem no meu bairro. Eu não sou católica. Mas vivo o meu dia a dia atenta ao outro e a tudo o que me rodeia. Vejo a divindade nos tons do mundo, nos rostos das pessoas, no toque de pele do meu filho. Pronto: não sou católica. Sou humana. Uma “religião” que deveria ser mais praticada.
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Fiquei comovido com a tua partilha, conheço bem esse sentimento. Eu também não tenho religião, nem partido, nem clube de futebol.
Essa história que relatas é comum. Acho que está relacionada com o desquilíbrio entre a busca da satisfação espiritual e ter os pés bem assentes na terra.
Gosto dessa religião “humana”.
Muito grato pela partilha, ainda bem que não desististe por causa do bug nos comentários.
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Obrigada 🙂 Voltarei certamente.
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Este pulsar, com uma nova sensação de sagrado descoberta pelo Rodrigo, parece-me influenciado pelo seu envolvimento no mundo da psicoterapia corporal.
Aos 80 anos pouco posso contribuir para ajudar o Rodrigo a consolidar a sua descoberta de uma nova espriritualidade a partir do domínio da incognoscibilidade como coisa, ou aquilo, que não se pode conhecer. No entanto deixo uma pista como estudioso do tema “autorregulação dos afetos na intimidade afetiva” que se pode integrar no conjunto de modalidades da Psicoterapia Corporal.
Embora se possa aceitar que “Apenas o vivido é compreendido” aproveito para valorizar o paradigma “critérios epistémicos” que tenho trabalhado no âmbito de um modelo de medisção na área das Ciências da Comunicação referindo o texto Uma Teoria Coerencial da Verdade e do Conhecimento, incluído na obra, Verdade e Interpretação – Perspectivas da Filosofia, publicada em 1986, onde Donald Davidson dá consistência a duas ideias através da concepção coerencial da verdade, das frases e do conhecimento: coerência produz correspondência; correspondência não exige confrontação. A ideia de confrontação de frases com as respetivas experiências deve ser abandonada a partir do desenvolvimento semântico com caraterísticas epistemológicas na direção de uma teoria do sentido e da verdade como coerência de crenças. Para além das crenças do autor, Davidson salienta duas razões para ultrapassar a procura de base epistemológica para o conhecimento: fundamentação das crenças no testemunho dos sentidos (sensação, perceção e experiência); certeza de que as coisas parecem ser. A partir da certeza obtida no interior do sistema de crenças do autor, uma teoria coerencial fornece aos céticos razões para acreditarem que crenças coerentes são verdadeiras. Nesta confrontação observa-se que a orientação epistemológica da causalidade se desenvolve no ambiente argumentativo, no seu estatuto, poderes e na articulação da verdade com o racionavelmente aceitável.
Enfim… será bom que o Rodrigo continue a “sentir um amor incondicional por tudo o que é”, mas que se questione sobre a hipótese de mais cedo do que julga poder considerar o seu corpo totalmente explorado.
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