És extrovertido ou introvertido?

Eu no Pico

Assim que desligo as luzes do carro alugado volto a surpreender-me com o negrume da noite. Estou há mais de quarenta e oito horas na ilha, mas ainda não consegui sossegar o coração. Está tudo bem – tento acalmar-me tal como, em tempos, tentava sossegar a minha filha perante a escuridão do seu quarto ao deitar. Sem muito sucesso. Ao longe, o murmurar do mar chega sorrateiro, mas chega. Daqui não consigo ver a montanha, mas sinto a sua presença. Um pequeno apontamento da natureza. Um gigante que me recorda a minha finitude. Estou sozinho e não sei como se faz isso.

Saio do carro, atravesso a estrada e entro no caminho. Ao fundo vejo as silhuetas da banda que decora a fachada. Demoro-me um minuto no pátio sui generis a observar as cadeiras de madeira de todos os tamanhos e feitios. No Inverno é ali que vai toda a gente – explicaram-me quando perguntei pela “noite” do Pico. É domingo e toda a gente são menos de uma dúzia. No fundo do bar uma dupla joga snooker enquanto um observador atento cofia a barba e acena aprovadoramente. Peço uma mini preta e decido ficar a observar o grupo que joga matraquilhos numa mesa daquelas que dá gosto – maciça, honesta.

Quando o avião descolou de Lisboa, o diálogo entre o meu lado extrovertido e o meu lado introvertido, já ia aceso. Passados dois dias a aventurar-me pela ilha, é esse mesmo diálogo interno que me faz parecer uma barata tonta dentro do bar Café Concerto. Ora me encosto à porta entalhada com painéis de vidro e me imagino a meter conversa – Como é que se faz para jogar matrecos? Ora me ponho a deambular pelo pátio, fingindo observar as cadeiras e as estrelas, enquanto me julgo – E com quem é que tu vais jogar? Precisas de um par. Estás sozinho.

À medida que os pares da mesa de matraquilhos vão rodando, a minha voz teima em não sair na proporção com que a cerveja vai entrando. Simplesmente não sai.  Até que pouso a garrafa vazia no balcão e regresso de carro a casa, onde ninguém me espera. Deitado na cama folheio umas páginas do “The Dispossessed”, a história de um estranho numa terra estranha e acabo por adormecer com um murmúrio mental: Podias perfeitamente ter perguntado se alguém queria fazer par contigo. Era o que o teu amigo Vidrão teria feito..

Fazer o que me apetece

Recentemente passei três dias sozinho na Ilha do Pico. Comprei a viagem por impulso, sem ter um plano. Tinha apenas um local onde dormir e um carro com que me deslocar. Ia em busca da vivência.

Como é estar sozinho numa montanha cercada pelo Atlântico, em pleno Inverno?

Fazer aquilo que me apetece, sem dar contas a ninguém, mesmo ninguém (essa rara experiência para um elemento de uma família). Era esta a curiosidade que me acompanhava nas semanas que antecederam a partida. Eu percebo que é uma intenção um pouco estranha. Quando a partilhava, as perguntas surgiam sempre no domínio do fazer: Vais subir ao Pico? Vais fazer um retiro? Vais escrever? Eu ia fazer o que me apetecesse e só iria descobrir isso quando lá estivesse. Era uma viagem no domínio do estar: estar só, no Pico.

Fazer o que me apetece no momento, sem planos, parecia-me mais fácil do que na realidade foi. Ter essa possibilidade implicou redescobrir como me é difícil estar sozinho, longe de onde me conhecem. Não me sinto visto e isso desperta-me medo e ansiedade. É uma sensação muito primária, difícil de colocar em palavras. Algo existencial que se mistura com a necessidade de ser amado. O sintoma mais claro dessa angústia é o diálogo que emerge das catacumbas, ampliado por altifalantes espalhados pela minha mente. É uma troca de argumentos entre dois protetores que tentam ajudar-me a navegar pela minha solidão.

Um deles é assim gordinho, peito aberto, pés bem afastados, assentes no chão, sorriso fácil. Quer fazer amigos. O outro é franzino, com uma ligeira corcunda, perna cruzada, dobrado sobre si mesmo, como se tivesse medo de expor o coração, bate nervosamente com o pé no chão. Tem medo de ser rejeitado.

Percebo que estas duas personagens estão sempre comigo, mas ali pude dar-lhes espaço para que saíssem do diálogo interno para o movimento externo. Visto de fora talvez parecesse loucura, eu a andar de um lado para o outro à frente da porta de um edifício nas Lajes do Pico, de onde vinha um clamor entusiasmado de várias pessoas. Quando finalmente me convenci a entrar, encontrei um jogo de vólei a decorrer, entre uma equipa masculina e uma equipa feminina. Fiquei a assistir, como se fizesse parte daquele mundo, daquela gente. Ou ainda, quando demorei três idas ao maravilhoso restaurante dentro do Mercado Bio na Madalena, para conseguir começar a meter conversa com a simpática equipa de cozinha. Um sucesso social que não consegui empreender no bar Café Concerto. Talvez se tivesse bebido uma segunda mini.

Fora das caixas

Uma vez definiram-me como um introvertido corajoso. Não sei… naquela noite não me senti lá muito corajoso. Eu sei que colocarmos as pessoas em categorias nos ajuda a navegar no mundo. Mas desde a minha experiência interna fica difícil caber em qualquer uma das caixas: introvertido ou extrovertido. Desde aqui de dentro sinto-me mais dentro de um gradiente dinâmico que depende do contexto onde estou, do que me aconteceu antes e de quem está comigo. Desde aqui de dentro nada é óbvio, mesmo quando é óbvio.

Eu tenho na minha bucket list passar um ano da minha vida na ilha do Pico. É difícil explicar porquê, mas depois desta experiência de três dias a vontade mantém-se. Talvez seja a oportunidade que uma montanha rodeada pelo Atlântico me traz de conhecer a minha ilha interna.

16 opiniões sobre “És extrovertido ou introvertido?

  1. Meu caro Rodrigo o assunto e a forma como o descreves são complicadas, para já, desta vez vou mais tarde (depois de outros testemunhos) voltar ao assunto, retiro, “Podias perfeitamente ter perguntado se alguém queria fazer par contigo. Era o que o teu amigo Vidrão teria feito.”. Para mim a vida admite tais passagens, mas julgo que existem muitas outras vivências mais apetecíveis ao redor da família, do trabalho remunerado, do trabalho voluntário, do lazer e para mim, sempre, do estudo da aprendizagem do aumento de mais competências. Até breve.

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  2. Foste um corajoso em não ter sucumbido à bengala do telemóvel! 🙂 Há 3 anos fui trabalhar durante uns meses para uma empresa de cruzeiros. Não conhecia ninguém e estava completamente fora da minha zona de conforto. À noite, depois do trabalho as pessoas juntavam-se no crew bar mas demorei algum tempo a arranjar coragem para lá ir sozinha e sabes o que me salvou? A mesa de matraquilhos!

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      1. À defesa é onde me safo melhor 🙂 se encontrares mesas de matraquilhos por Lisboa, fazemos uma family battle 😛

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  3. Associo está tua experiência à implantação das vinhas introvertida que se rodeiam de muros e crescem no seu interior No fundo foste uma videira do pico durante 3 dias. Estive lá há não muito tempo e considero ser um local onde se deve estar muito acompanhado para superar essa introversao que se respira a cada momento.
    Abraço
    João Martins Alves

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    1. Adoro essa imagem das vinhas introvertidas do Pico 🙂
      Imaginar-me como uma videira tem o seu encanto pois passei algum tempo no meio delas na Criação Velha.

      Obrigado pela imagem e pela partilha.
      Rodrigo

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  4. Olá Rodrigo,
    Estive 2 anos sozinho nos Açores. Quando digo sozinho quero referir-me à maior parte dos tempos livres. Habituei-me facilmente porque tinha livros e porque gosto da natureza. Um dia dormi no Faial numa vivenda em frente ao Pico. Recordo que o acordar foi magnífico. Recordo também que aprendi com Raúl Brandão que o melhor que uma ilha tem … é a ilha em frente! Senti isso outra vez quando das Flores avistei o Corvo.
    Quanto a ser introvertido, eu hoje sou menos do que já fui, penso que com a idade se fica menos receoso de se falar e conhecer o outro.
    Abraço,
    JG

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  5. Obrigado mais uma vez por esta partilha tão deliciosa! Gostei muito de ler e de te sentir. Tão bom sentir a humanidade/vulnerabilidade/verdade que neste caso diz respeito à solidão que a todos nos toca, e à forma como lidamos com ela. Às potencialidades e dificuldades da mesma. Essa viagem foi muito inspiradora e também gostava de fazer algo parecido (apesar de viver só e por isso estar habitualmente mais comigo e o meu cão). Um dia…

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  6. Meu caro Rodrigo, tenho de responder como prometi, embora também possa “sentir/adaptar” o que dizes perto do final, “Desde aqui de dentro sinto-me mais dentro de um gradiente dinâmico que depende do contexto onde estou, do que me aconteceu antes e de quem está comigo”.
    A resposta é assumida como ter feito um percurso de EXTROVERTIDO desde o início da vida profissional (18 anos) até agora (83). Nesta categoria considero que se nota ser animado junto de outros, de fácil convivência e comunicação, podendo ser considerado simpático por outras pessoas, mas faltando cumprir neste conceito ser divertido e contar anedotas (gosto de as escutar). De certo modo em vez de tímido sinto que sou carismático, falante em vez de quieto e comunicativo em vez de recatado, situação vivencial que gostosamente me levou, aos 52 anos, a envolver-me no mundo das Ciências da Comunicação percorrendo, em acumulação com os ambientes familiar, profissional e social, dezoito anos de estudante universitário (licenciatura, mestrado e doutoramento).
    Em termos de caraterísticas de introvertido julgo ser reflexivo, penso/analiso/escolho pensamentos e sentimentos para melhor estar junto de outros e dos ambientes que me envolvem [pessoas, animais (em especial pássaros) , flores e árvores]; gosto de estar sozinho em algumas situações (praia/nadar); evito envolver-me em ambientes confusos.
    A situação de extrovertido pode provocar afastamentos, faltas de consideração e invejas, podendo em alguns aspetos criar animosidades em familiares e amigos, pelo que me parece necessário, para ter muito mais situações agradáveis do que desagradáveis, que haja multiplicidade de relacionamentos/envolvimentos, ou seja, viver/atuar em ambientes diversificados.
    Naturalmente que posso não ser totalmente responsável por me parecer que sou considerado extrovertido, mas esta situação, que ao longo dos anos tem sido alimentada, parece-me preferível a comportamento introvertido.
    Um abraço da maior consideração.

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  7. Parabéns pela partilha, em tempos já tinha por cá passado e depois tenho saltado os emails, hoje tive a oportunidade de me “perder” novamente na leitura e fez-me todo o sentido 🙂

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  8. Introvertido, extrovertido… ás vezes penso que são conceitos gastos ou redutores.
    Teoricamente eu sou uma introvertida e sempre fui desde criança. Por isso mesmo, em adulta fui criando estrategias para vencer essa introversão que se tornava timidez.
    Ja mais crescida,como tinha medo/vergonha de falar em publico sempre que era preciso eu era a primeira a avançar. Fazia isso para que a intervenção dos outros não me inibisse e fizesse ganhar medo. Tentava meter conversa com outras pessoas mesmo quando isso me era dificil.
    Como dizem os americanos “fake it fake it until you make it”, hoje sou menos intorvertida e para os mais distraidos podem nem me recomhecer nesse papel.
    Mas não gosto de festas com muita gente, gosto de estar no meu cantinho ou com amigos mas não muitos de cada vez, sou energetica mas penso muito com os meus botões.
    O meu objectivo não era tanto um ano no Pico, ja la estive, subi la cima e foi fantastico. O meu objectivo era mesmo fazer um retiro de silencio para poder estar mais comigo, ir mais ao meu interior e calar estas vozes que tenho sempre cá dentro..
    Será que isso faz de mim umma introvertida? Acho que não ou taalvez , mas sinceramente isso não me preocupa.

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