Sem chuva, não há arco-íris

desenho infantil de sol, chuva e arco-iris

Estou em Santa Cruz – essa praia no oeste agreste português onde o inverno passa o verão. Eu e o meu filho vamos a caminhar no meio da estrada, o que só é possível fazer nas terras onde os peões ainda são a classe dominante, quando ele afirma “Papá, eu nunca te vi chorar”. Fiquei atrapalhado, como se estivesse a ser acusado de estar em falta para com ele. O meu crítico interno saiu disparado de dentro da sua caixa-surpresa com as suas acusações: “Estás sempre a dizer que é ok chorar e olha para ti…”; “De que serve escreveres elogios ao choro e pedires para os deixarem chorar, se és incapaz de o fazer”. E rematou com a sua melhor crítica destrutiva: “ÉS UMA FRAUDE”.

Depois de uns segundos em que tentei organizar-me por dentro, acabei por responder ao meu filho “Eu com a idade esqueci-me de como se faz. Nunca percas essa capacidade”. O clássico: Faz o que eu digo, não faças o que eu faço.

Quando chega ao fim

Esta conversa surgiu no seguimento da sua partilha sobre os últimos dias do campo de férias do CISV que este ano foi fazer. Durante um mês ele conviveu intensamente com jovens da sua idade, oriundos de todo o mundo. No último dia, ao despedirem-se, choraram todos. Quando ouvi o seu relato senti-me feliz por ele e saudoso por mim. Lembrei-me de eu próprio chorar desalmadamente nos finais dos campos de férias e senti saudades desses momentos em que a intensidade do momento ganhava à necessidade de controlo e as lágrimas galgavam as barragens internas.

Conheces essa sensação? Chorar num misto de felicidade e tristeza por teres descoberto que há pessoas maravilhosas no mundo que gostam de ti sem saberem quem tu és, e aperceberes-te que esse momento de suspensão da amargura do julgamento chegou ao fim? Nos campos de férias, essa sensação materializava-se num livrinho cheio de coisas bonitas que escreviam sobre mim e que eu guardava como um bem precioso – uma relíquia de um mundo onde o que há de melhor em cada pessoa vem ao de cima, onde há amor, há camaradagem, há loucura, há vida. Há risos e há lágrimas.

Ao conversar com o meu filho sobre os últimos momentos do seu campo de férias apercebi-me que há muito tempo que não me sinto assim – a rebentar de emoção porque algo maravilhoso chegou ao fim. 

Controlar-me para não chorar

Acho que há uma relação direta entre a minha incapacidade de chorar e a minha incapacidade de voltar a sentir esses momentos de descontrolo. Sem sol e sem chuva, não há arco-íris. Bem, não é totalmente verdade, porque eu já vi um arco-íris com lua cheia durante uma travessia noturna do canal entre o Faial e o Pico. Portanto, o correto seria dizer que sem luz e sem gotículas de água suspensas no ar, não há arcos circulares coloridos no céu. Mas isto é o meu lado científico crítico a interferir neste texto. Para a minha metáfora, interessa-me a ideia de que sem lágrimas e sem risos não temos acesso ao espectro total que essas experiências nos possibilitam. O que, trocado por miúdos, quer dizer que se eu passar a vida a controlar-me para não chorar, não vou aceder à sensação da qual sinto saudade.

Apesar do choro custar a vir, hoje em dia comovo-me mais do que antigamente. E se for no escuro do cinema ou da sala lá de casa, até deixo uma lágrima rolar-me pela face. Como quando ontem, aninhado no colo da família entrincheirada no sofá, me emocionei com um episódio de Anne with an E, a série que elegemos para ver todos juntos. Ainda assim, no dia a dia, não choro. Sinto uma impressão assomar-me à ponta do nariz, os olhos ficam sob pressão, eu travo a respiração e a emoção acaba por se desvanecer. Há sete anos que faço psicoterapia e nunca, em nenhuma sessão, deixei que uma lágrima se libertasse. Pobres lenços de papel que ali ficam pousados na mesinha sem qualquer utilidade.

Os homens ainda não choram

Para mim, é muito curiosa esta dificuldade em chorar. Não é racional, parece para lá do meu controlo, mas eu tenho consciência dela. Talvez seja uma diretiva impregnada no meu sistema nervoso oriunda da minha ancestralidade masculina, conhecida como “os homens não choram”. Felizmente, há cada vez mais referências na sociedade sobre a importância dos homens expressarem as suas emoções, particularmente a de chorarem. Eu próprio, apesar das minhas dificuldades, acredito que um homem chorar não é sinal de fraqueza, é sinal de força. Significa que esse homem é capaz de enfrentar a multidão de homens e mulheres que na sua vida e nas vidas dos seus antepassados escarneceram da sua sensibilidade.

Há não muito tempo estávamos todos reunidos em família – quando nos juntamos somos quase vinte – e o meu pai decidiu improvisar um discurso. Emocionou-se e as lágrimas surgiram. Ele ficou atrapalhado. Eu fiquei perdido, confuso, acho que nunca tinha visto o meu pai chorar. Não sabia o que dizer. Então a minha irmã e o meu irmão vieram em socorro do momento e disseram: Chora pai. Chora que faz-te bem. Eu comovi-me. Senti-me um sortudo por ter nascido numa família assim.

Ah! E se nunca fizeste um campo de férias, ou tens saudades de rever como é, podes espreitar esta reportagem da RTP2 sobre um campo de férias da Candeia. Eu apareço por lá 🙂

21 opiniões sobre “Sem chuva, não há arco-íris

  1. Meu caro Rodrigo começo por contrariar essa de ” Faz o que eu digo, não faças o que eu faço”, como desculpa ou ordem por estar completamente fora dos mundos da liderança e da humildade da atualidade, hoje temos mesmo de dar o exemplo, a todos os níveis, para conseguirmos que nos sigam. Quanto ao chorar faz bem e acontece-me frequentemente perante o mal e o bem. Agora tenho chorado (a sós) com alguma frequência devido à reunião de dois acontecimentos inesperados que muito me agradaram e agradam relacionados com o ambiente familiar. Tb choro (a sós) com a receção de e-mails onde me apercebo da compreensão por parte de Bons Amigos do que efetivamente julgo que merece reconhecimento. Quanto ao chorar por forma a ser observado por outros acontece de vez em quando no que respeita a momentos de profunda mágoa por isto ou por aquilo. A mim, aos 83 anos, mas ainda envolvido num conjunto diversificado de questões complicadas relacionadas com saúde e noutro conjunto de gostosos envolvimentos como este de ter uma amizade com o Rodrigo e de já estar atrasado para estar noutra às 11h00, considero que disponibilidade para chorar é muito bom, faz mesmo bem.

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  2. Mas olha que a tua intervenção na reportagem faz nó na garganta e lágrima no olho.
    “apercebi-me que há muito tempo que não me sinto assim – a rebentar de emoção porque algo maravilhoso chegou ao fim”
    Obrigada por isto, fez-me perceber o que é que tenho sentido.

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  3. Pois visitei a Candeia e lá te vi , agradado com esta bela iniciativa de ajuda aos outros. E ao ver-te, emocionei-me porque via, num plano imaginário, o teu pai e o fruto da sua bondade. Belo momento a que me foi dado assistir. E Candeia que vai à frente, alumia duas vezes!
    “Um Homem não Chora”, foi isto que ouvi muitas vezes dizer. Mas algumas vezes vi o meu pai chorar. Não me lembro se os meus filhos me viram chorar. Quando víamos algumas sagas românticas em conjunto, devem ter visto os meus olhos molhados, mas devo ter evitado demonstrar esta “fraqueza” sentimental. Talvez por isso, eles também não sejam muito de chorar. Mas a sentença era tão forte que Luís de Sttau Monteiro a cunhou num seu livro. Hoje já choro com mais facilidade, felizmente.
    Quanto ao exemplo que se dá aos filhos eles percebem bem como os pais se comportam perante as diversas situações da vida, e tendem a imitá-los. Reparem que uma família de esquerda “gera” normalmente descendentes de esquerda, uma família de benfiquistas idem. Mas nem sempre! O meu pai era tão benfiquista ferrenho e tanto contra o Porto, que eu talvez por isso, não sou fã de nenhum! Ou seja, eu percebia o exagero do comportamento do pai e entendi que podia ser mais feliz e mais justo se não estivesse amarrado a nenhum clube. E daí parti para a política: sou de esquerda não alinhada.
    Tento assim ser o mais livre que posso. Essa parte, que penso ser boa, passou para os filhos, mas outras não passaram. Como diz o Prof Sobrinho Simões relativamente ao cancro: “também, é preciso ter sorte!
    Com este final, devo ter acabado mal, mas assim reflito melhor as minhas fraquezas.
    Bem hajas Rodrigo, continua alumiando.
    Jorge Golias

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  4. Obrigado. Mais uma vez adorei ler. Chorar faz bem e é difícil. E concordo com o comentário que os nossos filhos aprendem connosco só a ver as nossas reacções. Grande desafio. Continua a escrever.

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  5. Acho que não há género nem idade fixos para se chorar. As razões do chorar é que vão sendo diferentes, consoante a nossa experiência de vida e maturidade emocional.

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  6. Rodrigo! que belo artigo, como todos os outros 😉
    … e que bom ver a reportagem sobre a candeia e também o link para o CISV que já me tinha cruzado o radar há algum tempo
    abraço e vontade de te encontrar ao vivo um dia destes…

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  7. Várias coisas me suscitam este texto
    A importância do exemplo que aliás já referiste noutros blogs:os nossos filhos têm os olhos postos no que fazemos mais go que no que dizemos.
    Depois chorar, para homens nas também para mulheres, tornou se sinónimo de fraqueza nesta sociedade.
    Há que desmistificar esta ideia, Resgatar e deixar soltar a sensibilidade em cada um de nós.
    Contra mim falo que sou engenheira, fui engenheira, mas se calhar precisamos de mais poetas, pintores, artistas de todo o tipo e menos engenheiros, economistas…
    Finalmente comove-me a ideia de pensar que a sua família incentivou o seu pai a chorar.
    Puvi uma vez o meu pai chorar fechado sozinho no escritório, fiquei em pânico não sabia que ele chorava. Ele nunca soube que eu ouvi

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