Deixem-nos chorar

Dama branca para e2, cheque ao Rei (De2+). As pretas fazem roque menor (o-o). O adversário levanta o braço. Falta técnica. O Leonardo sem perceber porquê tinha acabado de perder o jogo que lhe daria acesso ao pódio do campeonato nacional de jovens de partidas semi-rápidas. Arrumou as peças no tabuleiro. Levantou-se. Todo o seu corpo era tensão. As pálpebras tremiam, mas ele aguentou. Eu esperava-o junto à saída do pavilhão. Assim que chegou ao pé de mim, abraçou-me e desmoronou. Chorou a sua frustração, desesperado por ter perdido aquele jogo. Eu deixei-o chorar, dizendo-lhe que não havia mal em chorar, que era normal estar triste e zangado. Ele chorava dizendo que não sabia que fazer roque com o rei em cheque era falta técnica. Eu acolhi o seu desespero, dando-lhe colo e devolvendo-lhe que gostava muito dele. Disse-lhe que para mim ele já era um campeão, pois não desistia e mesmo debaixo de pressão ia jogar cada jogo concentrado, decidido em ganhar, sem nunca tratar mal o adversário. Aos poucos foi-se acalmando e passado cinco minutos já estava a brincar às escondidas com os amigos. Ganhou o jogo seguinte como se nada tivesse acontecido. Terminou em quarto lugar.

O Leonardo não era a única criança em quem observei este comportamento durante o campeonato. Após o momento de tensão do jogo, caso perdessem ou ganhassem, as crianças descarregavam a tensão através do choro ou da alegria. Curiosamente, só vi uma criança realmente explodir de alegria, mas vi várias a desfazerem-se em lágrimas. A intensidade da expressão da emoção reduzia-se à medida que subia o escalão. Os jogadores do sub20 eram muito menos expressivos do que os jogadores do sub8.

A torneira da emoção

A vivência da emoção assemelha-se a uma curva de sino. Tem uma fase ascendente, um cume e uma fase descendente. Hoje compreendo que à medida que fui crescendo fui perdendo a capacidade de percorrer esta curva até ao fim. Algures a meio da fase ascendente, quando as lágrimas se começam a assomar aos olhos, eu bloqueio o processo. Engulo para dentro, reduzo a respiração e fico naquele planalto emocional que demora a desvanecer. Isto acontece igualmente com a sensação de nojo ou com a raiva que não expresso.

E porque é que eu bloqueio a emoção?

Não é fácil responder a esta questão. Há um medo, díficil de compreender, de que vai ser demais e que os outros não vão aguentar. Esta questão tem um lado de condicionamento comportamental que eu pude observar durante o campeonato. Vai para além da expressão “os homens não choram”. Quando as crianças vinham a chorar por terem perdido, os pais diziam-lhes: “não chores, está tudo bem, respira fundo, pára de chorar, vais ver que ganhas o próximo”. Os próprios pais não aguentavam ver o filho chorar e tinham que o salvar. Como se o choro mexesse com as suas necessidades emocionais. Então mentem-lhes, dizendo que está tudo bem quando não está, pois perderam o jogo. Deixem-nos chorar!

Quando eu reprimo a tristeza que sinto, estou a fechar a torneira da emoção. Essa torneira é comum para todas as emoções. Quanto mais a fecho, mais embotado fico. Aos poucos torna-se difícil chorar de tristeza, gritar de raiva, cuspir de nojo, rir à gargalhada, esbugalhar os olhos de surpresa e tremer de medo.

Eu comecei a fechar a torneira bem cedo para não exprimir a minha raiva. Tinha muito medo da minha agressividade. Então, de forma repetida, fui usando o meu corpo para a conter. O que nem sempre foi fácil. Quando tinha dezasseis anos, tive um episódio em que a minha raiva se exprimiu de forma totalmente desadequada. Descontrolado, atirei uma bola de basket à cara de um grande amigo. Atirei com o máximo da minha força. Felizmente falhei. Lançamentos nunca foi o meu forte.

Aos poucos o meu corpo foi-se ressentindo com esta contenção. A raiva reprimida manifestava-se de outras formas, cólicas, azia, sensação de enfartamento e talvez até tenha ajudado a famosa Helicobacter pylori a produzir uma úlcera duodenal. Depois de um ano de psicoterapia, estes sintomas reduziram-se significativamente. Eu tinha encontrado uma forma adequada de exprimir a minha raiva e de lentamente ir resolvendo o que a causava.

Isso vai acabar mal

Quando os meus filhos começam a ficar muito excitados numa brincadeira, dou por mim a não aguentar aquele nível de energia e a gritar desde o outro lado da casa: “Essa brincadeira ainda vai acabar mal!” Claro que, inevitavelmente, um deles magoa-se e começa a chorar. Se nesse momento eu intervenho e me zango com eles, o que invariavelmente acontece, fica uma tensão no ar que demora a passar. Eu bloqueio a emoção durante a fase ascendente e ficamos todos presos naquele planalto. Se eu os deixo resolver o assunto sozinhos, passado pouco tempo estão novamente a brincar. Na verdade, a brincadeira não acaba mal, simplesmente passa por um momento catártico que os permite regularem-se.

Não estou com isto a advogar que os pais não devem interferir na relação dos filhos. Se um deles se magoar a sério, é importante que os pais cuidem e façam o filho sentir-se em segurança. No entanto, acredito que é importante não os salvarmos em certas situações que por si só já são seguras e que os permitem aprender a lidar com as emoções e com as situações.

Experimentar em segurança

Esta noção de segurança é muito importante. Quando o Leonardo perdeu o jogo, ele só se permitiu chorar quando se sentiu em segurança abraçado por mim. Eu só me permiti começar a sentir uma alegria e tristeza desmesuradas na Candeia, pois senti que lá não era julgado e que estava em segurança emocional. Desde a Candeia tenho tido a sorte de encontrar espaços onde me é permitido experimentar as minhas emoções de forma total e em segurança. Recentemente tive a oportunidade de percorrer a curva de duas das emoções que mais reprimi na vida: a raiva e o nojo. No final da curva descobri sensações que tornam a minha experiência de vida mais rica e interessante.

Do outro lado da raiva, descobri uma energia (que parece) inesgotável, capaz de me fazer avançar na vida em busca daquilo que eu quero. Do outro lado do nojo, encontrei um prazer matreiro cheio de gozo pela vida. Esta experiência de sentir nojo foi especialmente surpreendente. Se o “bom aluno” não se podia zangar, então o “bom aluno bonzinho” não se podia, claramente, enojar.

Não acho que devas passar a gritar na rua sempre que te irritares, ou que cuspas na comida sempre que te sentires enojado. Ainda assim, desconfio que também tu tens algo a ganhar ao experimentares as emoções na sua plenitude. Não me parece possível encontrar a forma adequada, para mim e para os outros, de exprimir o que sinto, sem conhecer totalmente a curva. Provavelmente ficarás, como eu, na forma que te parece adequada para os outros, mas que é desadequada para ti. O exemplo mais doce que conheço desta capacidade é a história da avó que sempre que se zangava, ia até à caixa de correio, abria-a e gritava lá para dentro. Encontrou assim uma forma de deixar sair a sua raiva e de a enviar simbolicamente para os outros, sem os invadir ou magoar.

Dois malucos a festejar

Este caminho de exprimir o que sinto, sem medo de ser rejeitado, não é fácil. É uma busca lenta, com muito respeito por todos os mecanismos de defesa que fui criando ao longo da vida. Eles tiveram e têm uma função de me manter em segurança. Felizmente, o adulto que me tornei pode, em vez de reprimir, proteger o meu lado infantil e dar-lhe espaço para que também ele expluda de alegria.

Por isso já sabem, se um dia estiverem num campeonato de xadrez e virem dois malucos aos gritos a festejar os êxitos dos filhos, sou e a Carla (eu ando a aprender com ela) a viver a curva da emoção de forma plena.

8 opiniões sobre “Deixem-nos chorar

  1. Olá Rodrigo,
    Educar é uma aprendizagem constante, tal como a vida. Mas os filhos crescem mais depressa do que, em regra, o ritmo da aprendizagem dos pais. Vejo que aprendeste depressa e que usas uma imagem da física (e matemática) para definires o andamento das emoções: a curva de Gauss. Deves ter um apurado espírito científico. Mas conjuga-lo muito bem com um lado espiritual que cativa. Creio que quando se concilia a calma exterior com a interior deve-se viver numa espécie de nirvana, própria dos deuses. Mas nós somos homens. A perfeição talvez não seja o nosso melhor lugar para viver. Gostei da tua escrita.
    Parabéns pelo blogue.
    JG

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    1. Olá Jorge.
      No meio desta aprendizagem de vida ando não só à procura de calma interna, como de equilíbrio entre o meu lado engenheiro cético e o meu lado sonhador espiritual.
      Perdi a crença na perfeição há algum tempo. Há algo de muito sedutor na possibilidade de sermos imperfeitos. Acho que este tema também merece uma reflexão. Obrigado não só pelas palavras simpáticas, mas também pela reflexão que provocaram.

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  2. És o maior. E espero que continues a escrever. Espero inclusive que um dia escrevas um livro porque esta tua descoberta é também nossa. Minha. De forma diferente, pis claro. Um abraço

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  3. Tinha saudades de ler algo deste espaço… e vim ler este texto… gosto tanto de o ler.. que lindo que é podermos sentir com o corpo todo.. aprender a regular, respeitando-nos e aos outros..

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